O terreiro da Casa São Lázaro há um mês não escuta os sons dos atabaques durante as giras. As cadeiras da sinagoga Congregação Israelita Brasileira na
Douglas Ferreira | 12 de Abril de 2020 às 18:00
O terreiro da Casa São Lázaro há um mês não escuta os sons dos atabaques durante as giras. As cadeiras da sinagoga Congregação Israelita Brasileira na sexta-feira, dia de uma das rezas mais importante da comunidade judaica, estão vazias. Muçulmanos também não foram à Mesquita Brasil para rezar no dia que marca a metade dos três meses sagrados para o islã.
Com a pandemia do novo coronavírus e o isolamento social, grupos religiosos tiveram que adaptar rituais diários e comemoração de datas sagradas para evitar aglomerações.
A primeira medida adotada pela maioria foi transferir os encontros que aconteciam nos templos para o ambiente virtual. Sem a possibilidade das procissões e orações nas igrejas, líderes religiosos usam plataformas online para rezar com os fiéis.
“Diante desse período de quarentena, começamos a sentir necessidade de estar presente no dia a dia. A igreja utiliza as redes sociais, a rede católica de televisão, Facebook, Zoom e vai se comunicando com as pessoas para não deixá-las isoladas, reclusas, sem comunicação”, diz o padre José Bizon, professor de teologia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para os que não têm acesso à internet, foi criada uma rede para telefonar a eles.
A Congregação Israelita Brasileira já transmitia aulas em ambiente online para chegar a pessoas que não podiam ir ao templo. Porém, é a primeira vez que os membros têm essa experiência com os serviços religiosos.
“Rezar em uma sinagoga, na frente da câmera, é a sensação religiosa mais estranha que eu já tive na vida”, conta o rabino Michel Schlesinger, que tem feito transmissão das missas de sexta-feira no templo com uma equipe reduzida e respeitando as regras de proximidade física e higienização. “Ao mesmo tempo, a gente está recebendo respostas tão bonitas da comunidade, de pessoas que já não conseguiam chegar a nossos serviços religiosos e conseguem chegar a gente”.
Idosos que já não conseguiam frequentar as sinagogas, pessoas que moravam em regiões da cidade mais distantes de onde acontecem as rezas, e até quem vive em cidades onde não há rabino, têm dado depoimento durante as transmissões, exemplifica Schlesinger.
No lugar da benção dos ramos, por exemplo, fiéis penduraram ramos nas portas de lares.
Já o cálice e o pão compartilhados na ceia memorial protestante serão consumidos nas próprias casas dos fiéis, diz Ed René Kivitz, pastor evangélico da Igreja Batista de Água Branca. “O que também é muito interessante porque, no velho testamento, cada família matou um cordeiro e ungiu o sangue em sua casa. Então era um cordeiro para cada família”, relembra, sobre a tradição.
Mesmo com esse recursos, existem aspectos ritualísticos impossíveis de se reproduzir no período de reclusão social. Para a umbanda, há um prejuízo irrecuperável ao não se ter a proximidade física nos rituais, afirma o pai de santo Alexandre Meirelles.
Por questões éticas, os guias não têm seus trabalhos espirituais mais profundos de incorporação filmados ou transmitidos. É neste momento que acontece parte fundamental dos rituais, que prevêem artefatos como velas e incensos.
“Tudo na umbanda passa pelo corpo. Existe uma parceria entre entidade e médium quando você está dando um passe em alguém. Em distância, o que há é um bom pensamento, uma vibração mental, mas o médium não está próximo para ser o mediador dessa energia. O confluente nunca é passivo, ele é corresponsável pelo trabalho, ele está envolvido nele fisicamente, mentalmente e emocionalmente”, explica Meirelles.
O importante, no seu entendimento, é manter o senso de união e comunidade, e dar o apoio espiritual e mental possível aos que precisam.
O pastor Ed René Kivitz afirma que o ser humano é um ser gregário, avesso à solidão, e receia que o isolamento afaste as pessoas. Em um domingo comum, de 6.000 a 8.000 pessoas costumam frequentar sua igreja, que fica na Barra Funda, em São Paulo.
“A experiência de comunidade, de reunir-se com pessoas que você chama de irmão e irmã, é uma experiência de fraternidade humana. Quando a gente perde o senso de comunidade e o senso de pertencimento a um horizonte além da família, há um perigo de nos isolarmos de maneira egoísta, cuidando só de quem é sangue do nosso sangue”, diz.
Paradoxalmente, o isolamento tem aumentado a necessidade das pessoas de se conectar e buscar apoio. Meirelles notou, por exemplo, um aumento na interação entre as diversas casas da São Lázaro, que tem unidades no interior de São Paulo, em Vitória e na Alemanha.
“Nós precisamos do contato presencial, de abraço, deste afeto, deste cuidado mútuo. Temo que o não presencial se degenere em não pessoal”, ressalta Kivitz.
Atilla Kus, teólogo muçulmano e secretário-geral do Centro Islâmico e de Diálogo Inter-religioso e Intercultural, conta que o período de isolamento social é visto como uma oportunidade de se afastar do que é mais mundano e refletir sobre a espiritualidade, Deus e própria existência.
“No Islã, nós temos a ideia de reclusão por um tempo. Eu vejo a quarentena como uma prática da minha religião, como uma obediência a aquilo que o profeta aconselhava 1.400 anos atrás”, afirma Kus.
“O Islã se preocupa mais com a vida humana, com a saúde humana: para que exista a prática religiosa, em primeiro lugar, precisa-se de um corpo saudável.”
A oração principal que acontece nas mesquitas às sextas-feiras deixou de ser feita. Eles mantiveram as rezas diárias.
Os muçulmanos também estão em um período sagrado, entre o sétimo e nono mês do calendário islâmico, que vai até maio.
No Egito, eles já estão estocando os ingredientes necessários para as refeições do mês sagrado -o que não aconteceu por aqui.
É o mesmo caso dos judeus, que passam pela pessach, feriado que celebra a liberdade e relembra a saída do Egito e o cruzamento do mar vermelho, entre os dias 8 e 16 de abril.
O matzá, um pão sem fermentação usado na cerimônia, não chegou em alguns países por conta da pandemia, conta Michel Schlesinger.
No Brasil, a dificuldade ficou em sair para comprar os ingredientes. “É possível que se achem algumas substituições [para os alimentos que faltarem]. Sempre levando em conta que o principal preservar vidas humanas”, diz o rabino.
Esse também é um período em que as famílias costumam se reunir para a cerimônia. Neste ano, a recomendação foi para que comemorassem apenas entre o núcleo familiar com quem residem.
O reverendo Kazuyoshi Nakahara, responsável pela instituição budista Risho Kossei-Kai do Brasil, conta que optaram por fazer uma oração online. Normalmente, eles se reúnem na igreja e banham a imagem do deus com um chá adocicado -segundo a lenda, quando ele nasceu, os céus ficaram tão contentes que provocaram uma chuva de néctar.
“Até agora, era uma premissa compartilhar o mesmo local, mas em muitos casos se provou o contrário, que não precisamos necessariamente estar presentes”, afirma o reverendo.
A Casa São Lázaro quebrará, por conta da quarentena, uma tradição de décadas de realizar um retiro no feriado que coincide com a semana santa. Apesar da importância do evento, a religião atua mais pela constância dos trabalhos no dia a dia que por celebrações pontuais.
“A umbanda é uma religião de serviço. A gente sempre pensa no servir e no serviço. Então é muito fácil, num momento como este, desagregar todo mundo uma vez que a atividade cotidiana é o nosso forte”, explica.
Normalmente, o terreiro tem atividades todos os dias da semana, com trabalhos espirituais a comunitários. Toda a renda do local vem de ações coletivas, como a lanchonete, rifas ou doações. Mesmo com dívidas crescentes, o local segue paralisado.
“Estando vivo, a gente corre atrás do que for necessário depois”, completa o pai de santo.
“Acho que os grandes templos eles serão ressignificados e uma das grandes mudanças que espero ver acontecer é que a experiência espiritual cristã deixe de ser templocêntrica, que o altar deixe de ser o centro da vida da igreja e a mesa da comunhão torne-se o centro”, espera, Kivitz.
Para o rabino Schlesinger, a pandemia é um ponto de inflexão de magnitude proporcional às mudanças que a nova doença trouxe.
“A comparação que faço é com a destruição do templo de Jerusalém. Todo aquele modelo de judaísmo teve que ter reinventado: no lugar de ter um único templo, foram construídos sinagogas no mundo todo, veio a liderança dos rabinos”, afirma Michel.
“Mas, naquele momento, ninguém podia dizer exatamente qual seria a cara do novo judaísmo. E acho que vivemos um período semelhante agora”, conclui.