A autora confessa numa carta ao pai o quanto, na infância, dependeu dele para superar o medo da escuridão, atribuindo a ele um poder quase mágico.
Você não sabe, mas eu precisava ouvir seus movimentos, passos, bocejos, tropeços, para não me sentir só durante a noite. Eu conferia a você o poder dos objetos mágicos, como as crianças fazem quando dizem que alguma coisa lhes dá sorte ou azar. Eu só dormia bem quando sabia que você tomava conta da casa, fazendo uma espécie de vigília da noite – sem ter consciência disso.
Demorei muito a vencer o medo da solidão. Ainda mais no escuro. Medos ancestrais. Eu fui uma criança ancestral, e minhas noites eram cheias de fantasmas. Eu via vultos e figuras estranhas quando, de repente, abria os olhos da noite. O medo aumentava quando eu ouvia o silêncio. Seus passos pelo corredor desmanchavam o cenário dos fantasmas, que sumiam quando você acendia a pequena luz da passagem. Era um alívio.
Com o tempo, desenvolvi a estratégia de cobrir meu rosto com um travesseiro para não ver mais nada na escuridão. Até porque eu não teria eternamente seus passos, movimentos, bocejos e tropeços para tomarem conta do meu mundo.
Afinal, crescer é descobrir que ninguém toma conta do mundo a não ser a gente.
Foi difícil eu me desprender da sua mão; largar a certeza de que só de você estar acordado enquanto eu dormia era suficiente para eu me sentir forte diante da noite. Encarar a escuridão de frente e finalmente me render ao sono. Eu tinha muito medo de entrar no pequeno ensaio diário da morte sem você estar ali rondando. Quanta responsabilidade eu depositei nos seus movimentos, passos, bocejos, tropeços.
Os fantasmas continuam existindo se eu abrir os olhos sem a proteção de um travesseiro, mas hoje quem precisa fazer a vigília sou eu, quando minhas filhas dormem. Talvez elas tenham herdado de mim a infância ancestral.
Você, pai, foi meu objeto mágico e atribuí a você poderes ocultos que você jamais imaginou que tivesse.