No começo do mês, vi a notícia de uma escola particular em São Paulo que recebeu reclamações dos pais por conta de um dos títulos usados para trabalhar
No começo do mês, vi a notícia de uma escola particular em São Paulo que recebeu reclamações dos pais por conta de um dos títulos usados para trabalhar com adolescentes do 7º ano: a versão em quadrinhos do Diário de Anne Frank. A principal reclamação? Que o livro possui conteúdo erótico, destacando passagens onde Anne Frank começa a relatar as descobertas da puberdade e o êxtase quando vê outro corpo feminino.
Essa não é a primeira vez que isso acontece. Em fevereiro de 2020, a Secretaria de Educação de Rondônia recebeu um memorando mandando recolher 43 títulos de suas escolas — entre eles, clássicos como “Os sertões”, de Euclides da Cunha, e “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Livros como “Meninos sem pátria”, de Luiz Puntel e “A bolsa amarela”, de Lygia Bojunga, já foram acusados de incentivar a doutrinação comunista ou a ideologia de gênero, seja lá o que isso signifique.
A perseguição a livros de temática LGBTQIA+ são constantes
Isso me lembra do que aconteceu durante a Bienal do Livro de 2019. Eu estava lá, promovendo o meu livro, quando recebi a informação de que o prefeito da cidade do Rio de Janeiro na época, o pastor Marcelo Crivella, ameaçou censurar todos os livros com “conteúdo impróprio”, motivado pela imagem de dois rapazes se beijando em uma página da história em quadrinhos “Vingadores, a cruzada das crianças”.
O prefeito vinculou o beijo de dois adolescentes do mesmo sexo com uma suposta forma de erotização às crianças, tudo porque… bem, havia a palavra ‘crianças’ no título do livro.
A ideia de Crivella era a de que os tais livros com conteúdo impróprio deveriam ser vendidos com um lacre preto e um aviso de que eram inadequados. E, obviamente, não estamos falando de livros eróticos de conteúdo heterossexual. Esses estavam livres da fiscalização.
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O foco eram livros de temática LGBTQIA+, tivessem eles conteúdo sexual ou não. A decisão acabou não vingando e foi derrotada no STF, mas isso não diminuiu a sombra de uma ameaça constante: a de que nossas histórias são inadequadas.
A justificativa é sempre a mesma: qualquer história que saia da curva do conservadorismo é vista como uma ameaça à moral e aos bons costumes. Como se ainda estivéssemos no século XIX. Mas como vamos aprender a conviver em uma sociedade plural, complexa e cheia de nuances como a nossa se não estivermos dispostos a aprender sobre como somos diferentes uns dos outros?
Alguns dizem que existe hora para conhecer essas histórias, e que crianças não deveriam ser submetidas a certos conteúdos. O que, em parte, não deixa de ser correto. Mas, ao mesmo tempo, também devemos pensar que incentivar a exposição à pluralidade — digo aquela adequada à idade, é claro –, principalmente de experiências diferentes das nossas vidas, só aumenta o nosso repertório e nossa capacidade de empatia.
Porque é muito irônico estar exposto desde a infância à erotização heterossexual e à violência constante que aparece nos noticiários ou na ficção, mas não podermos aprender com vivências de pessoas que existiram em tempos, espaços e realidades diferentes das nossas.
Censurar livros, filmes, peças de teatro ou qualquer outra manifestação de arte não é algo novo
E sempre tem um propósito: sufocar as pessoas, comunidades e ideias que estão sendo retratadas naquelas manifestações. A desculpa de que tal livro ou filme ataca a moral e os bons costumes da sociedade brasileira está, não exclusivamente, mas com alguma constância, vinculada à existência de pessoas LGBTQIA+ em uma posição que não seja caricata. Onde elas podem viver dentro de toda a complexidade que a vida permite a sua existência.
Junho é considerado o Mês do Orgulho LGBTQIA+, e apesar de achar que sempre é tempo de refletir sobre como nossas vivências são retratadas na arte, esse mês tem um apelo especial para mim. Vamos usá-lo para pensar no tipo de mundo em que vivemos e em como queremos que ele seja daqui para frente.
Porque eu não quero que os adolescentes LGBTQIA+ passem pelas mesmas dificuldades que eu passei na adolescência. E, para isso ser possível, temos que normalizar o mundo plural em que vivemos e entender que não falar sobre um assunto não vai fazer ele deixar de existir magicamente.