Viemos à Letônia pela primeira vez no verão de 2012, em busca de um refúgio de nossa vida caótica em Moscou. Meu marido e eu passamos quase todo o tempo
Redação | 24 de Maio de 2019 às 17:00
Viemos à Letônia pela primeira vez no verão de 2012, em busca de um refúgio de nossa vida caótica em Moscou. Meu marido e eu passamos quase todo o tempo no carro com corretores de imóveis; finalmente encontramos nossa casa dos sonhos perto de Cēsis, uma cidadezinha do século 13 a uns 90 km de Riga, a capital do país.
Mesmo antes de nos mudarmos cinco anos depois, fiquei fascinada pelo legado do país, exposto onde quer que eu olhasse. Isso é ainda mais verdadeiro em Riga, fundada em 1201. A Velha Riga é o coração histórico da cidade, situada na margem direita do rio Daugava. Ali, cerca de 500 prédios cuidadosamente preservados cobrem oito séculos.
Caminhar pela Velha Riga foi como viajar no tempo. Pude explorar a arquitetura de vários séculos. As camadas culturais acrescentadas a prédios e igrejas com restaurações e reconstruções revelam o efeito destrutivo dos elementos e da mudança de gosto.
A sensação da história de Riga é tão forte que me vi imaginando a vida de seus cidadãos séculos atrás. Eis algumas de minhas fábulas, povoadas por personagens históricos.
No piso de paralelepípedos da Praça da Prefeitura da Velha Riga fica uma placa octogonal que poderia ser facilmente confundida com uma tampa de bueiro. Nela se lê simplesmente:
“A primeira Árvore de Ano-Novo em Riga 1510”. Em essência, a cidade afirma que é o lar da primeira árvore de Natal decorada em espaço público.
Se visitar Riga entre o início de dezembro e meados de janeiro, você descobrirá que a tradição continua. Como parte do festival “O caminho entre as árvores de Natal”, a cidade é decorada com peças artísticas no tema da festa. “Há mais de cem instalações usando todo tipo de conceito e material”, diz a artista Larisa Bogdanova, que mora em Riga. “Todas aumentam o clima mágico da cidade antes do Natal.”
Dizem que a tradição de decorar as árvores de Natal começou com a Irmandade dos Cabeças-Pretas, uma guilda de mercadores e comerciantes que data do século 14. (O nome da guilda vem de seu escudo com a cabeça de São Maurício, que tinha a pele escura.)
Na Casa dos Cabeças-Pretas, na Praça da Prefeitura, os integrantes faziam negócios durante o dia e davam festas à noite. A irmandade se desfez em 1939, e o prédio foi destruído por bombas durante a Segunda Guerra Mundial e reconstruído para a festa de 800 anos de Riga, em 2001.
A casa reconstruída continua a ser uma das estruturas mais atraentes e extravagantes da cidade. Em seu ornamentado Salão de Comemorações, imagino a cena no Natal de 1510.
Naquela noite, eles queimaram a árvore como planejado, mas no ano seguinte os cabeças-pretas decidiram que seu abeto seria enfeitado e deixado em pé. É uma tradição que, no mundo inteiro, continua até hoje na época do Natal.
Vou seguindo as ruas estreitas da Velha Riga em busca dos Três Irmãos. Viro uma esquina, e lá estão eles: os prédios residenciais mais antigos de Riga, lado a lado. Dizem que foram construídos por gerações diferentes da mesma família, e a casa mais antiga, chamada de Irmão Branco, data de 1490.
Com o passar dos séculos, cada casa foi reformada, reconstruída e ampliada. O Irmão Amarelo foi construído em 1646, no estilo maneirista holandês, e reformado no século 18. Uma placa presa na frente da casa diz: “Soli Deo Gloria” (“Em glória de Deus apenas”, um princípio protestante).
Enquanto fito os Três Irmãos, volto a 1746, quando o Irmão Branco pertencia a Johann Zarnov.
Hoje, os Três Irmãos abrigam o Museu Letão de Arquitetura. Numa parede do pátio dos Três Irmãos está o escudo da família Zarnov.
A igreja de São Pedro, de 1209, eleva-se acima da silhueta da Velha Riga. Até a Segunda Guerra Mundial, sua torre de 120 metros era a construção de madeira mais alta da Europa.
Uma das características mais notáveis no alto da torre da igreja é um catavento em forma de galo. Na Idade Média, quando o vento era favorável para os navios que entravam no porto de Riga, o lado dourado do galo virava-se para a Praça da Prefeitura. Isso significava que seria um dia bom para o comércio e os negócios. Quando o vento impedia os navios de entrar no porto, o galo mostrava seu lado preto.
O tempo, o fogo e a guerra cobraram seu preço da igreja, mas talvez o maior infortúnio tenha ocorrido em maio de 1721, quando um raio atingiu a torre e a incendiou. Por ordem do tsar russo Pedro, o Grande, que por acaso estava em Riga na época do incêndio e até ajudou a combatê-lo, a reconstrução começou em poucos meses.
Quando a torre ficou pronta, em 1746, anunciaram que um novo galo seria posto no alto da estrutura.
Hoje, o cálice de vidro intacto de Vilbern, que, segundo dizem, caiu numa carroça cheia de palha, está em exposição no Museu de História de Riga.
Infelizmente, a torre e o galo não tiveram tanta sorte. A torre pegou fogo outra vez um ano depois. A estrutura atual é a quinta, e o galo, o sétimo desde 1491. A igreja e a torre foram destruídas pelo fogo de artilharia em 1941. A reconstrução da torre no pós-guerra acrescentou um elevador e duas galerias de observação que permitem uma vista de Riga.
Hoje, o galo de ferro continua a ser o símbolo mais destacado de Riga.
Cruzo a entrada da Catedral de Riga e chego a um salão grandioso, com teto arqueado. Sento-me, e logo um organista, invisível para o público, começa a tocar. A música celeste me envolve, enchendo-me de alegria.
Com 25 metros de altura, o órgão de tubos da catedral, de 1884, tem 6.768 tubos de madeira e metal, de 13 mm a 10 m de comprimento. São ativados por quatro teclados e uma série de pedais. Organistas do mundo inteiro vêm tocar o instrumento.
Durante o concerto, não consigo afastar os olhos da fachada ornamentada do órgão. Esculpidas na madeira, há criaturas fantásticas, anjos, guirlandas e a imagem de algumas autoridades da cidade, feitas por Jacob Raab quando o órgão original foi construído, em 1601. Pouco se sabe sobre ele, mas talvez tenha vindo de Lübeck para Riga e sido contratado como auxiliar; depois, quando o velho mestre morreu, assumiu o trabalho.
Imagino Raab sentado entre os cidadãos e o clero no dia da inauguração, em 1601.
Durante a cerimônia, Jacob Raab está nervoso, sem fôlego, mas orgulhoso de sua obra. Depois, Nicolaus von Ecke, uma das autoridades retratadas na fachada do órgão, aproxima-se dele. “Sua fachada é digna do instrumento majestoso que ornamenta”, declara. Os cidadãos próximos concordam com a cabeça e sorriem para o jovem mestre.
Aquele dia foi o ápice da carreira de Raab. Séculos depois de sua morte, as pessoas ainda vão à catedral apreciar a voz divina do órgão e admirar a fa-chada nascida da imaginação e do trabalho duro de Raab.
O tópico mais curioso da época medieval são a alquimia e seus remédios que visavam curar doenças. Não se sabe o local exato da primeira botica de Riga, mas acredita-se que a primeira farmácia foi aberta em 1357. Um documento de 1409 mostra que a cidade pagava salário a um homem (muito provavelmente, o dono da farmácia) chamado Gherlacus.
Andar pelas ruas da Velha Riga me lança em outra viagem no tempo a uma das primeiras farmácias da Europa.
O Museu da Farmácia de Riga dá uma ideia de como se praticava a medicina naquela época. O museu tem uma coleção impressionante de instrumentos antigos, amostras médicas e cartazes manuscritos explicando como funcionavam os vários tratamentos.
Entre os objetos expostos há garrafas de cerâmica com a inscrição Rigas Melnais Balzams – o Bálsamo Negro de Riga, inventado por Abraham Kuntze no século 18 e divulgado como capaz de “curar em cinco dias qualquer febre, dores de barriga, dos dentes e da cabeça, queimaduras, membros paralisados e até luxações”. Entre seus ingredientes há água, álcool, 24 ervas e temperos e açúcar queimado, que dava à bebida a cor escura.
O bálsamo existe até hoje como bebida alcoólica; ela pode ser consumida pura, misturada em coquetéis ou acrescentada ao café ou ao chá. A fórmula original continha 16% de álcool, mas as variações modernas, criadas pela destilaria Latvijas Balzams, podem conter até 45%.
Minha jornada pelo tempo termina a pequena distância da Praça da Prefeitura. Entro no Riga Black Magic (“magia negra de Riga”), um pequeno bar de bálsamo com fachada e interior no estilo do século 18. Enquanto tomo um copo da bebida amarga, reflito sobre o modo como a rica história de Riga continua viva, não só em minha imaginação, mas na cidade e na vida das pessoas ao meu redor.