O idioma é o maior medo de quem sonha em visitar o Japão. No entanto, a jornalista Silke Pfersdorf prova que é possível conhecer o país sem falar japonês.
Thaís Garcez | 4 de Janeiro de 2020 às 16:00
Vejo os caracteres. Só não sei o que significam. Alguns parecem simples bonecos de traços, outros lembram troncos de árvore emaranhados. Estou sentada num tipo de lanchonete em Quioto, diante de um cardápio todo escrito em japonês. Com fome e sem entender nada, o pior é que estou completamente incapaz de me comunicar. No final, me decido pelo trivial. “Peixe”, diz em inglês o homem atrás do balcão e me mostra o polegar erguido. Peixe soa bem. Quanto ao resto, terei de esperar para ver.
Há muitos restaurantes em Quioto que exibem na vitrine réplicas plásticas dos pratos, e aí só é preciso apontar o que queremos. Mas nem sempre é assim nas ruazinhas do antigo bairro de gueixas e entretenimento de Guion. Aqui, lanternas brancas e vermelhas oscilam com a brisa suave diante de pequenos restaurantes meio escondidos que não fazem esforço algum para atrair turistas porque há muitos outros fregueses. Encontro um lugar aconchegante no balcão de uma das casas estreitas de madeira e observo o cozinheiro fritar minha comida. Na sala dos fundos, alguém dedilha um instrumento de cordas japonês chamado shamisen. O casal à minha frente alimenta um ao outro com pauzinhos. Eles sorriem e me fazem um brinde. Então, sorrio de volta enquanto aguardo meu peixe ou seja lá o que pedi. Já comecei a entender que, no Japão, a felicidade não precisa de palavras.
Leia também: Descubra como comer bem no exterior sem gastar muito
Perdida na tradução, largada por conta própria. Quando estou no centro de Tóquio, não me sinto tão distante de minha zona de conforto; quase tudo, inclusive o mapa do metrô, também está escrito com nosso alfabeto ocidental. Mas a situação muda assim que se começa a viajar pela cidade na linha verde circular, rumo a lugares como Nippori, no antigo bairro de Yanaka. Lojas minúsculas, gatos de rua pelos becos, um cemitério maravilhosamente pitoresco. Esse é o aspecto mais autêntico – e indecifrável – de Tóquio. Como um marinheiro naufragado, vejo-me vadeando por um oceano de símbolos desconhecidos. Meus olhos buscam com desespero uma das escassas 26 letras que conhecem. Mas só encontram lojas em que terei de entrar se quiser saber se o que vendem é algo de comer, sandálias de dedo ou um novo penteado.
Pela porta aberta de uma loja, espio uma estante com garrafas contendo um líquido transparente. Meu cérebro apressado conclui que deve ser água e me manda comprar sem demora. Seja o que for, a bebida é enjoativa de tão doce. Minhas papilas gustativas reclamam, e meu cérebro petulante se irrita até que, de repente, é tomado pelo pânico: como achar o caminho de volta à estação ferroviária? Talvez perambular sem destino não seja uma grande ideia quando a gente se sente como a criança que se perdeu da mãe numa grande loja de departamentos.
Avisto uma velhinha de cabelo roxo. “Nippori?“, pergunto, hesitante. Imediatamente, ela começa a explicar como chegar lá – em japonês. Tento decorar a sequência de gestos. Direto à frente, depois direita, então esquerda. E acabo chegando lá, só que uma hora depois, após quatro outros japoneses me explicarem o caminho. Tudo é muito mais fácil no centro da cidade. Dez anos atrás, ainda havia japoneses que fugiam aterrorizados quando um turista lhes pedia informações em inglês, com medo da vergonha que causariam se não fossem compreendidos. Mas, faltando pouco mais de dois anos para a Olimpíada de Tóquio, os cursos de idiomas estão bombando.
“Can I help you?” (“Posso ajudar?”)Estou no meio do movimentado bairro de Shibuya, no centro de Tóquio, no cruzamento que talvez seja o mais famoso do mundo. Quando o semáforo fica verde para as seis travessias de pedestres, as ruas são engolidas por uma enchente humana. Estou ali em pé com meu mapa e, de repente, há um japonês a meu lado, me guiando primeiro para cá, depois para lá. Ele usa terno escuro e leva uma pasta, obviamente voltando do trabalho para casa. Mas, em vez de continuar seu caminho, ele usa seu tempo para conduzir uma estrangeira até o santuário de Hachimangu, que deve ficar a um quilômetro de distância. Depois, ele faz uma reverência e me deseja uma estada agradável no Japão. Na verdade, já comecei a gostar de minha estada neste país; agora tenho certeza de que tudo vai dar certo.
O filósofo Ludwig Wittgenstein disse: “Os limites de minha língua são os limites de meu mundo.” Mas isso não me impede de ir a Quioto. É bastante fácil pegar o Shinkansen (trem-bala), mesmo para uma novata como eu. O pessoal das bilheterias das estações ferroviárias maiores fala inglês, e as placas são claríssimas.
Quando chego à estação de Quioto, o desafio seguinte é encontrar o aluguel de bicicletas. De acordo com a página de informações que consultei, fica a apenas três minutos. Mas em que direção? O homem a quem pergunto fica muito envergonhado porque também não sabe, mas mesmo assim insiste em me mostrar o caminho. Não tenho escolha a não ser segui-lo, e dez minutos depois estamos de volta à estação. Ele faz uma profunda reverência, murmura desculpas e se afasta rapidamente. Assim, vou para o balcão de informações turísticas da estação, onde eles desenham o caminho em meu mapa. Para ser franca, eu poderia ter descoberto sozinha. Alugar uma bicicleta o dia inteiro custa cerca de dez euros. Quioto é plana como uma panqueca, os morros estão todos a distância. Há 1.600 templos e 400 santuários xintoístas. A caminho do Templo Dourado, perco-me no labirinto de ruas laterais. Erro de iniciante; por que não fiquei na rua principal?
Avisto um policial diante de um pequeno prédio com uma luz vermelha. Leio que essas minidelegacias se chamam kban e se encontram em todos os bairros. Aponto meu destino no mapa, e o policial faz vários sinais para a esquerda e para a direita. Suponho que esteja me dando instruções – em japonês. Enfim, ele pega a bicicleta e vai pedalando à minha frente até chegarmos a um cruzamento de onde só preciso seguir em linha reta.
A gente aprende pelo caminho. Dois dias depois, me encontro rumo à montanha sagrada de Kya-san. É claro que é algo que só aprendizes avançados devem tentar. Ao sul de Osaka, sou forçada a usar os trens locais. Encontro instruções na internet, sigo rigidamente o que o GPS do celular me diz e chego ao trem, onde só há lugar em pé.
O trem pode estar cheio, mas pelo menos tenho certeza de que é o trem certo graças à placa na plataforma. Mas, depois que embarco, vejo-me olhando todos os anúncios diferentes, tentando adivinhar o que vendem. Eu devia me sentir assim quando pequena. Sem entender nada, o mundo à minha volta um mistério total. Ouço avisos que não compreendo e, de repente, estou completamente sozinha no trem vazio. Todo mundo está saindo, não me pergunte por quê. Um velho gesticula e tenta me explicar em mau inglês. Finalmente, entendo: o trem não vai mais avançar. Nem sei como se diz “estação”, mas cá estou eu noutra plataforma.
Um rapaz me diz, dessa vez em inglês bastante bom, que o trem enguiçou, mas que um substituto nos espera na plataforma em frente. Ele faz uma reverência e pede desculpas como se fosse pessoalmente responsável pelo atraso. Você nunca verá ninguém na Alemanha, nem sequer um funcionário da ferrovia, demonstrar tanto pesar, nem que o serviço seja completamente cancelado.
Pelo menos, na montanha dos 117 templos meu silêncio forçado é uma coisa maravilhosa. Quando por fim chego, depois de duas horas de uma viagem tortuosa de trem e da subida de bonde, tudo está pitorescamente envolto pela neblina. Quando não se pode escutar a conversa dos outros, a gente se concentra automaticamente nos sons e imagens do próprio lugar. O tamborilar das sandálias geta de madeira no asfalto, os monges cantando nos templos, o vento sussurrando entre os cedros. Pode-se passar a noite na maioria dos templos; eles oferecem até meia-pensão. Reservo meus aposentos pela internet no templo Muryoko-in.
Centenas de estátuas de Buda guardam o tranquilo cemitério de Oku-no-in. Foto: © SEAN PAVONE/ALAMY STOCK PHOTO/Revista Seleções.
Esse é o lar de Genso, um suíço que veio para Kya-san uns dezoito anos atrás. Ele fica contentíssimo de dizer aos outros o que ver e o que fazer aqui em cima. E o faz em várias línguas, inclusive, é claro, na minha. Naturalmente, ele me acompanha em meu passeio pelo antigo cemitério Oku-no-in. Cem mil lanternas de pedra e estátuas de Buda vigiam os túmulos de líderes religiosos, senhores feudais, samurais, a pedra de séculos coberta de musgo.
Então chega a hora de um café e, depois, uma visita ao banheiro. É um desastre à espera de acontecer: duas portas, dois símbolos inescrutáveis. Vou para o cubo com perninhas ou para os bumerangues entrelaçados? Um homem sai da porta com o cubo, e mergulho na outra. Quando saio, uma criança ri, e a mãe ri por trás da mão. Será que acabei entrando na porta errada? Então percebo que ainda estou usando os chinelos de plástico oferecidos para uso no banheiro. É um erro clássico de estrangeiros que visitam o Japão. Quaisquer pensamentos que tive de me misturar aos habitantes locais se evaporam num instante.
Entretanto, no quarto dia, vou para as montanhas de Hakone, a uns setenta quilômetros de Tóquio – sem incidentes, caso você esteja se perguntando. O Monte Fuji se mostra bem, com duas nuvenzinhas de fumaça subindo acima do pico. Tenho uma vista perfeita dessa paisagem vulcânica antes de partir com minha mochila. Quero andar até o alto de Owakudani. Não é nenhuma grande façanha, apenas uma caminhada de poucas horas. Uma senhora idosa vem em minha direção. “Owakudani?”, pergunto, só para ter certeza de que ainda estou no caminho certo. Ela me olha como se pedisse desculpas, inclina a cabeça e respira fundo. Será que não me entendeu?
Então ela diz alguma coisa e cruza as mãos. Li que, no Japão, esse gesto significa “não é bom”. Naquele mesmo momento, um americano que fala japonês aparece e me diz que o caminho está fechado um pouco mais à frente porque as chaminés sulfúricas estão soltando vapores venenosos. Uma das muitas coisas que estou aprendendo é que os japoneses são educadíssimos e sempre amistosos, mas não exprimem necessariamente com muita clareza o que querem dizer.
É noite, e, enfim, estou deitada no onsen de meu hotel. Os japoneses adoram as fontes locais de água quente. Eu me preparei bem e sei o que fazer: primeiro, sento-me num banquinho de madeira e despejo baldes d’água sobre mim, submetendo devidamente o corpo inteiro a uma esfregação meticulosa. Só depois de remover todos os vestígios de sabão, entro no banho. Mas não precisava me incomodar em procurar a etiqueta correta do onsen com antecedência; ela está exibida com clareza em dois cartazes na parede, com homenzinhos desenhados mostrando o que fazer.
Assim, duas noites depois, estou de volta a Tóquio, me sentindo uma heroína. Então, dou um último passeio por uma cidade cheia de personagens estranhos. Cada personagem é um quadro, a cidade em si um livro ilustrado. Pela última vez, entro num restaurante numa ruazinha e aponto palavras que não sei ler. É divertido não saber o que receberei; e tudo acaba sendo sempre delicioso.
Digo “arigatô” ao sair. Obrigada. Aliás, a única palavra japonesa que aprendi em toda a minha viagem. O homem no bar bate palmas, e o cozinheiro me cumprimenta atrás do balcão. “Bom japonês!”, diz ele, rindo. Que povo maravilhoso.