Os antigos sítios com jarros de pedra no Laos recentemente receberam da Unesco o título de Patrimônio Mundial da Humanidade. Conheça a Planície dos Jarros!
Redação | 1 de Julho de 2020 às 01:01
Os raios do sol lutam para penetrar a neblina que pende sobre a floresta no alto de uma montanha no extremo norte da serra Annamite, no Laos. É um dia frio de fevereiro de 2017, e uma cafeteira metálica fervilha na fogueira. Ali perto, o arqueólogo Dougald O’Reilly, com chapéu de lona australiano e calça do exército, jaqueta de náilon acolchoado preto e camiseta do Grateful Dead, está agachado numa trincheira de quatro por quatro metros, cavada com precisão. Na borda, há um disco oval de pedra com cerca de um metro de diâmetro, caído junto de um imenso “jarro” de pedra.
Este é o Sítio 52 da Planície dos Jarros, chamada assim por causa do platô onde fica o grupo de jarros mais famoso, o Sítio 1, perto da cidade de Phonsavan. O Sítio 52 se situa a uma hora de estrada asfaltada de Phonsavan e mais 45 minutos subindo uma íngreme trilha de terra. No chão da floresta, espalhadas por toda parte, há cerca de 400 vasilhas de pedra, algumas com até três metros de altura, outras caídas de lado. Alguns jarros estão quebrados, com árvores crescendo através deles; também podem ser vistos discos, alguns dos quais talvez sejam tampas. Os jarros estão vazios, a não ser por aranhas e água da chuva estagnada.
O’Reilly, de 53 anos, é professor assistente da Universidade Nacional Australiana, em Camberra, e investigador chefe nesse projeto de três semanas em campo que faz parte de uma iniciativa de cinco anos, a primeira nessa escala em cerca de 80 anos, para resolver o mistério dos jarros. “As duas perguntas mais comuns que me fazem são: para que serviam os jarros e que idade têm”, diz o canadense moreno de olhos azuis. “É o que estamos tentando descobrir.”
O esforço em equipe envolve O’Reilly e sua parceira no projeto, a colega arqueóloga Louise Shewan, da Universidade de Melbourne, que trabalha com o governo e os arqueólogos laosianos encabeçados pelo Dr. Thonglith Luangkoth, diretor de Arqueologia do Ministério de Informações, Cultura e Turismo do Laos. “Não poderíamos fazer essa pesquisa sem algumas pessoas extraordinárias no local”, acrescenta O’Reilly.
Uma das metas principais é mapear os sítios e os próprios jarros com tecnologia de sensoriamento remoto e sistemas de informações geográficas. Isso se mostraria fundamental na candidatura do Laos para elevar os sítios dos jarros a Patrimônio Mundial da Humanidade pela Unesco, título concedido em 2019. O Laos é um dos países mais pobres do mundo, e o título pode ajudar a promover o turismo e a preservar os sítios.
Pouco se sabe sobre os megálitos, feitos, pelo que se acredita, há cerca de 2 mil anos. Há uns 80 sítios com jarros espalhados pelo nordeste do Laos e alguns no extremo leste da Índia, a milhares de quilômetros. Em muitos, a pedra foi extraída a quilômetros de onde estão os jarros, aumentando ainda mais um mistério que lembra Stonehenge: com peso de até 10 toneladas por peça, como é que saíram das pedreiras e foram parar ali? Foram transportados sobre troncos, puxados por elefantes, ou rolados até os sítios? O’Reilly diz que a busca de respostas é “revigorante”.
Nenhuma grande escavação foi feita desde a década de 1930, quando a famosa arqueóloga francesa Madeleine Colani estudou os jarros na Indochina francesa da época. Depois, a partir da década de 1940, veio a guerra civil, e, mais tarde, a Guerra do Vietnã, na qual os Estados Unidos bombardearam o Laos durante uma década. (Dizem que o Laos é o país mais bombardeado per capita da história.) Cerca de 30% dos 260 milhões de bombas lançadas nunca detonaram, e o material bélico não explodido ou “UXO” (da expressão em inglês unexploded ordnance) é um obstáculo fatal – não só no trabalho arqueológico, mas em tudo, da construção de estradas à agricultura. A entidade britânica sem fins lucrativos Mines Advisory Group está no Laos desde meados da década de 1990 para remediar isso. É um trabalho lento e meticuloso, mas agora o grupo limpou os UXOs de vários locais, num total de cerca de 60 km², indicando as áreas limpas com tijolos enfiados no chão com a gravação “MAG”. Isso ajudou a manter em segurança cerca de um milhão de pessoas.
O Sítio 1 foi declarado limpo há cerca de dez anos. Em 2016, durante as escavações daquele platô marcado por bombas que abriga cerca de 300 jarros, a equipe de arqueólogos encontrou ossos humanos em vasilhas de cerâmica menores, enterradas sob discos de pedra planos ao lado dos jarros. A teoria é que os jarros servissem para práticas mortuárias. “As pessoas, talvez da Idade do Ferro, dois mil anos atrás, podem ter usado esses jarros para deixar os mortos apodrecerem e, depois, transferir os ossos para vasilhas menores e sepultá-los”, explica O’Reilly. Arqueólogos como Colani (que O’Reilly admira tanto que deu seu nome, Madeleine, à filha) e Julie Van Den Bergh, belga que mapeou alguns sítios de jarros no início dos anos 2000, acreditavam nisso. “Mas, até recebermos o resultado dos exames de laboratório das amostras que tiramos, ainda não temos como provar”, diz O’Reilly. Até agora, ainda não há outra hipótese plausível. (Uma fantasiosa: alguns aldeões acreditam que os jarros eram usados para guardar o vinho de arroz de um gigante mítico.)
De volta ao Sítio 52 (que não tinha nenhum UXO, só balas de metralhadora), oito integrantes da equipe de O’Reilly e Shewan usam uma ferramenta chamada sacho, parecida com uma picareta, para cavar as trincheiras precisas no solo vermelho esfarelento ao lado do disco oval. Querem ver o que há embaixo; O’Reilly desconfia de ossos humanos, como no Sítio 1. Mas o disco é mais grosso do que se esperava – cerca de 25 centímetros – e pesado demais para erguer sem a ajuda de alavancas. O’Reilly vai até a floresta com o facão, corta alguns troncos de árvore e os arrasta até o local.
Quando usam as alavancas para erguer a tampa, o momento da verdade revela… nada. Eles levam mais algumas horas para escavar mais uns trinta centímetros… e nada.
“Ora, isso é muito interessante”, observa O’Reilly secamente, esfregando o queixo em falsa contemplação. Claro que está decepcionado como o restante da equipe, mas “às vezes a gente acha coisas, outras vezes, não”, diz, dando de ombros. Ele faz esse tipo de trabalho há mais de 25 anos, e já liderou uma escavação no Camboja, no complexo religioso de Angkor Wat, do século 12, o maior do mundo; em 2010, numa grande descoberta, ele e a equipe encontraram outro templo embaixo. “Mesmo quando o que a gente espera não está lá, neste caso material antropogênico, a questão ainda é coletar informações. E simplesmente continuamos procurando.”
Durante três semanas no Sítio 52, a equipe não achou nenhum osso, mas descobriu quatro locais desconhecidos de extração de pedra. Também experimentou um novo tipo de teste. Em termos simples, diz Shewan, a pedra não pode ser datada, “e então tiramos amostras do fundo do jarro para exames de luminescência opticamente estimulada”. Eles esperam que o teste revele quando a parte inferior do jarro foi exposta à luz pela última vez e, portanto, quando foi colocado no chão no lugar onde está. O processo de tirar essas amostras de pedra foi complicado porque não pode haver luz presente: lonas pretas à prova de luz foram estendidas sobre o local da extração, e O’Reilly usou uma lanterna coberta com um filtro vermelho para operar a broca e extrair a amostra.
De volta à base na Austrália, O’Reilly e Shewan podem “visitar” o Laos a qualquer momento, graças às instalações CAVE2 3D da Universidade Monash, em Melbourne. Fotos tiradas por drones em 2016 foram utilizadas para criar um Sítio 1 virtual. (Eles também usaram drones para tirar fotos do Sítio 52.) CAVE2 é a maior instalação de realidade virtual do mundo em seu gênero; não são necessários óculos especiais. “Podemos voltar às escavações para fazer coisas como tirar medidas e interpretar dados”, conta O’Reilly. E, graças aos drones, eles têm um modo seguro de verificar sítios de jarros que ainda não estejam limpos de UXO. “É claro que não se pode escavar sem estar lá, mas é possível obter muita informação sobre a localização do sítio e a paisagem circundante.”
Vai demorar um ano para a equipe ter resultados do solo e de outras amostras físicas, inclusive um dente humano, recolhidos no Sítio 52, e até dois anos para o resultado da luminescência opticamente estimulada. Mas O’Reilly espera que os dados finalmente ofereçam algumas respostas sobre esses imensos megálitos no alto de montanhas remotas e envoltas em neblina. “A arqueologia”, diz ele, “trata principalmente de decifrar mistérios, e a Planície dos Jarros é um dos enigmas do mundo.”
A Heritage Watch foi fundada por Dougald O’Reilly em 2003 quando ele morava e trabalhava no Camboja e viu o saque de antiguidades no país todo. “Achei que o saque era uma enorme tragédia”, diz ele. “Não se pode condenar as pessoas por escavarem perto de casa em busca de algo de valor, porque é a pobreza que move os saqueadores. Mas os sítios nos dão pistas da origem das civilizações.”
Os sítios incluem Angkor Wat (à direita), perto de Siem Reap. O templo do século 12, dedicado à divindade hinduísta Vishnu, ocupa 208 hectares e é o maior complexo religioso do mundo. “Quando eu era criança, a National Geographic dedicou um número a Angkor Wat, e fiquei assombrado”, recorda O’Reilly. Ele chegou a fazer trabalho arqueológico lá e a escrever o excelente livro digital An Interactive Guide to Angkor (Um guia interativo de Angkor).
No início dos anos 2000, ele decidiu ajudar a preservar os sítios pré-históricos de todo o Camboja. De seu apartamento em Phnom Penh, ele mobilizou os ex-alunos de arqueologia, pagando-os do próprio bolso.
“Começamos com projetos como sessões de treinamento em aldeias para instruir os moradores sobre a importância de preservar o passado.”
A entidade sem fins lucrativos, que O’Reilly acredita ser a primeira do gênero, também promove o turismo responsável: os visitantes são desestimulados a comprar antiguidades; as empresas recebem adesivos ou cartazes para ajudar os viajantes a identificar as que são éticas; e moradores são empregados para trabalhar nas escavações.
E a Heritage for Kids explica a questão às crianças. “Temos um programa piloto em escolas do noroeste do Camboja que envolve centenas de crianças”, informa O’Reilly. “O governo adora, as crianças também.”
Em 2009, O’Reilly ganhou o prestigiado prêmio de Gestão de Conservação e Patrimônio Histórico do Instituto Arqueológico dos EUA pelo trabalho com a Heritage Watch.