Poucos dias depois de chegar às Ilhas Shetland, o arquipélago subártico escocês na altura da Noruega, eu estava no alto de um penhasco. Então tive a
Julia Monsores | 2 de Outubro de 2019 às 17:00
Poucos dias depois de chegar às Ilhas Shetland, o arquipélago subártico escocês na altura da Noruega, eu estava no alto de um penhasco. Então tive a profunda sensação de estar muito longe de casa.
Eu desembarcara de um ônibus nesse ponto no alto da ilha minúscula de Unst, a mais setentrional e rochosa das Ilhas Shetland, com cerca de 500 habitantes. Comigo no ônibus estava um grupo do mundo inteiro, com maioria de mulheres, todas a caminho da Shetland Wool Week, a semana da lã das Shetland, louvada nos meandros do mundo tricoteiro como a meca dos festivais de tricô e têxteis.
Para chegar lá, o ônibus nos levou pela extensão de Mainland (“continente”), a maior das ilhas habitadas. Depois, atravessou o mar de balsa até a ilha menor de Yell. E, por uma estrada sinuosa, foi até a extremidade de Yell e fez outra viagem de balsa até Unst.
Agora, estávamos no alto do penhasco de Hermaness, lar das maiores colônias de aves marinhas do Reino Unido. Franzimos os olhos para enxergar na neblina e tentamos manter os pés no chão e os gorros tricotados na cabeça enquanto lufadas uivantes de vento nos empurravam.
Nashville: bem-vindos à cidade da música!
Antes de chegar às Shetland, a única coisa que eu sabia sobre o lugar era que ele é a origem do tricô fair isle. Uma técnica de trabalho com cores e desenhos miúdos usada em suéteres tradicionais. O que achei foi um lugar com uma história complexa além da indústria do tricô. Difícil de visitar, mas que compensa a viagem.
O arquipélago das Shetland tem cerca de 100 ilhas, embora só 15 sejam habitadas. Para chegar ao “continente”, toma-se uma balsa noturna ou um avião pequeno que vai de uma das principais cidades da Escócia até Lerwick, eixo do festival e única cidade das ilhas, com cerca de 7.500 habitantes. Peguei a balsa, uma memorável experiência de montanha-russa no mar revolto que não sei se quero vivenciar de novo.
A escritora de mistério Ann Cleeves situou uma série de casos de homicídio nesse arquipélago, transformados na excelente série Shetland, da BBC. É fácil ver por quê: passar pelas ilhas minúsculas é uma experiência de humor instável. Serpenteia-se por estradas de mão única, com bolsões de casas e ovelhas nos pastos, o oceano mal-humorado ora de um lado, ora do outro.
Muitas vezes, ao fazer uma curva na estrada, a vista que se descortina é de tirar o fôlego. Se estiver de carro, é preciso tomar cuidado para não sair da estrada. Os penhascos formam precipícios a pouca distância do asfalto; as enseadas têm ondas fortes (e, no verão, orcas que caçam focas sonolentas), rochas enormes saem do oceano perto da costa e, por toda parte, telhados, barcos e casas são pintados de cores alegres que explodem contra o céu nublado.
Fiquei lá uma semana, e só houve uma noite em que não ouvi o uivo forte do vento à noite. Em determinado momento, alguém perguntou a um agricultor local se o vento era daquele jeito o ano inteiro. “Vento?”, perguntou ele, incrédulo. “Isso não é nada! O tempo está calmo desde que vocês chegaram!”
O vento é uma grande parte da vida nas ilhas: quando o inverno se aproxima, tudo o que pode ser levado é removido dos quintais – carrinhos de mão, cortadores de grama, bancos de madeira. Nosso guia contou que, quando ainda morava no farol de Eshaness, no noroeste da ilha principal, o faroleiro acorrentava o carro ao penhasco para que não fosse levado pelo vento.
No inverno, são menos de seis horas de luz diurna. E, no verão, menos de seis horas de noite escura. O vento, pelo que me contaram, é constante, não importa o período do ano. Embora em certas épocas sopre com mais força ou de forma mais ou menos previsível. Em setembro, mês em que estive lá, há o chamado “vento de equinócio”.
Mas o povo das Shetland não poderia ser mais encantador. Ficamos tentados a pensar que o isolamento e a dureza da vida moldaram os habitantes para a gentileza. Em Virdafjell, a pousada onde fiquei com minha amiga, a proprietária nos recebeu com um cesto plástico de pantufas limpas para escolhermos antes de andar pela casa. E, toda manhã, servia um café adequado para dez homens famintos. Bolinhos, pães variados, ovos, iogurte, frutas e pelo menos dez tipos diferentes de flocos de milho.
Os visitantes são atraídos às Shetland pela arqueologia (há sítios antigos espalhados por todas as ilhas), pela geologia (as ilhas ficam sobre uma rede de placas tectônicas e se gabam de possuir uma série de rochas antigas e vulcânicas), pelas cavernas e passeios de caiaque e por uma enorme diversidade de aves marinhas. Os papagaios-do-mar, que no verão fazem ninho no arquipélago às centenas de milhares, são um atrativo popular.
Scalloway, que já foi capital das Shetland, abriga um castelo do século 16 e o Shetland Bus, um grupo de operações especiais que levou e trouxe guerrilheiros, material bélico e refugiados da Noruega durante a Segunda Guerra Mundial. Uma placa no portão do castelo declara: “Castelo aberto, não é preciso chave.” Minha amiga e eu, as únicas ali, perambulamos sem restrição pelos cômodos frios e úmidos.
A principal atividade econômica das Shetland é a pesca, principalmente de cavala e arenque, e a criação de salmão. E mais de 75% dos mexilhões da Escócia são ali produzidos. Mas, desde a época medieval, a indústria têxtil foi um elemento importante da economia das ilhas.
As ovelhas locais produzem fibras longas e macias que tornam inigualável a lã das Shetland. As mulheres fiavam a lã e tricotavam agasalhos a serem vendidos fora das ilhas.
Na época de minha visita, a principal atividade era a Wool Week, a semana da lã. O ressurgimento mundial do interesse pelo tricô tornou cada vez mais populares os festivais ligados a essa arte. Nos nove dias da programação, há inúmeras aulas e exposições, passeios, reuniões, chás e palestras em quase todas as ilhas. Num dia, contei 54 atividades diferentes.
Um passeio de um dia pela ilha principal incluía uma parada em Ollaberry Hall, no litoral oeste, onde uma mesa com mais de 2,5 metros de comprimento exibia pratos e mais pratos de bolos e biscoitos feitos em casa (homebakes) e moradoras locais nos serviam chá. Esse banquete acompanhava uma exposição de xales de renda tricotados com lã finíssima. Tão fina que o xale inteiro passa por uma aliança de casamento.
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Parece que todos os moradores que têm algo a ver com lã ou têxteis se apresentam no festival. “Estamos ficando aqui, essa é a mudança”, disse um morador. Antes do início da Wool Week dez anos atrás, segundo ele, a situação era bem desesperadora.
Em 2018, quase 700 pessoas – 100 a mais que no ano anterior – viajaram para o festival. Principalmente da Europa, dos Estados Unidos e do Canadá. Mas também de lugares mais distantes, como Austrália, Japão, Egito, Indonésia e Israel.
De onde vem toda essa atenção? O seriado da BBC ajudou. Assim como, talvez, o interesse de voltar ao básico de quem se sente cada vez mais distanciado de uma forma natural de comunidade em nosso mundo moderno.
Mas não é bom ser positivo demais. O setor do tricô das Shetland ainda enfrenta a demanda elevada por lã branca barata e produzida em massa e o pequeno mercado para peças feitas à mão. Mas, em pé à beira-mar nas Shetland, é impossível a tricoteira não se sentir otimista. E é impossível qualquer pessoa não se sentir inebriada.
por Nellie Hermann do the New York Times