É entre Anchorage e a vasta terra agrícola congelada em torno de Palmer que a absurda imensidão do Alasca nos atinge. A Glenn Highway, estrada que segue
Redação | 1 de Dezembro de 2020 às 12:58
É entre Anchorage e a vasta terra agrícola congelada em torno de Palmer que a absurda imensidão do Alasca nos atinge. A Glenn Highway, estrada que segue para nordeste a partir da cidade, se curva em torno das águas alimentadas pelas geleiras do Knik Arm, antes de entrar no amplo delta da planície de Eklutna Flats. Mais além, ficam os montes Chugach, brancos como porcelana fina.
A Ferrovia do Alasca corre paralela a nós e atravessa o Rio Matanuska por uma ponte de aço tão apequenada pelo ambiente que poderia estar num antigo trenzinho elétrico.
Já conheço os fatos: a Última Fronteira, como às vezes chamam o Alasca, tem mais litoral do que os 48 estados americanos continentais somados, abriga o pico mais alto da América do Norte, tem geleiras, vulcões ativos e três mil lagos. Mas a estatística não nos prepara para sua escala quase planetária.
Eu e minha namorada, Deryn, paramos num lugar alto e saímos do carro no silêncio gelado. Uma locomotiva amarela e azul puxa uma longa fila de vagões de carga e entra ribombando no campo de visão, vinda do norte, e o assovio de gaita de seu apito alerta alguns alces que perambulam por ali.
É como se eu estivesse no cenário de um filme; a qualquer momento, o diretor vai gritar “Corta!”, e o vasto cenário nevado será desmontado e revelará o estúdio.
Alguns anos antes, Maggie, minha amiga de infância no nordeste industrial da Inglaterra, se casou com um improvável piloto particular alaSquiano e se mudou para o vale de Matanuska-Susitna, menos de uma hora ao norte de Anchorage, no caminho do Parque Nacional do Denali.
“Não venha no verão”, disse ela. “Há enxames de moscas e hordas de turistas. Venha no início de março, quando há toneladas de neve, as noites são mais claras e o frio não o matará. É aí que se vê o Alasca real.”
No início de março, Deryn e eu estamos em Anchorage, junto à estátua de bronze do explorador James Cook. Olhamos a enseada cintilante que ele mapeou em 1778, agora batizada em sua homenagem, e, além dela, o Denali, pico mais alto da América do Norte; com mais de 6 mil metros de altitude, é visível a 200 quilômetros de distância.
Cook veio até aqui à procura da Passagem de Noroeste e do bônus generoso que o Almirantado Britânico prometera ao comandante da Marinha Real que a encontrasse. Ele não foi o primeiro nem o último a buscar fortuna aqui. Como tantos outros, foi rechaçado pelo mar congelado e pela tripulação próxima do motim.
Esta manhã, há um ribombo de caminhões trazendo equipes de huskies para o início cerimonial da famosa corrida de trenós de Iditarod, um trajeto fatigante de 1.600 quilômetros por uma trilha inupiaque que, mais tarde, foi usada por mineiros de carvão e de ouro.
A conselho de um afável motorista de táxi nativo, fazemos o desjejum no Gwennie’s, onde há um tesouro kitsch da fronteira: papel de parede preto e dourado com estampas de águia, cabeças empalhadas de alce, urso e boi-almiscarado e fotos de antigas equipes de trenó. Comemos um banquete de panquecas com xarope de bétula, cercados por homens de camisa xadrez que parecem que vão pular e fugir com nosso bacon.
Também é o último fim de semana do Anchorage Fur Rondy (encontro de peles de Anchorage), um festival anual de dez dias que antigamente marcava a volta dos caçadores depois do inverno solitário nas regiões selvagens, e a maior cidade do estado se mostra festiva.
Há um gigantesco torneio de pôquer no estilo Texas Hold’Em, um baile de mineiros e caçadores e o chamado Cornhole Ice Breaker Tourney (Torneio Quebra-Gelo de Cornhole, jogo em que se atiram saquinhos de milho num buraco), sem falar do lançamento de cobertores dos nativos e do rebanho de renas correndo pela principal rua comercial da cidade.
“Entre! Estou na cozinha preparando um urso”, grita Maggie quando batemos à sua porta. Seu senso de humor sempre foi peculiar, mas dessa vez ela não está brincando: o vizinho matou e esquartejou um urso-preto. Comemos urso refogado com batatas vitelotte e repolho roxo. A carne é magra e flocosa, com um sabor que lembra javali.
No dia seguinte, o marido de minha amiga me leva em seu avião monomotor de dois lugares, um Aeronca Chief 1944 vermelho e amarelo. Voamos 50 quilômetros para o norte sobre o Vale do Susitna até a cidadezinha de Talkeetna, onde contornamos a extraordinária Goose Creek Tower.
A torre construída por um excêntrico advogado alasquiano, com 56 metros de altura, é uma pilha de cabanas de tronco, cada uma de tamanho menor, que se eleva acima dos pinheiros e abetos como uma torre de relógios-cuco. Depois, sobrevoamos o desfiladeiro de Hatcher Pass e mergulhamos sobre o congelado rio Susitna enquanto rebanhos de alces inclinam as galhadas e nos dão um olhar lúgubre no mato coberto de neve.
Talkeetna (876 habitantes) tem um clima de fronteira e uma familiaridade alegre. Na frente da Fairview Inn, uma placa lista as regras da casa: são proibidas drogas, armas, brigas e discussões sobre a hora de fechar. Tomamos uísque Bulleit enquanto tentamos prever a data e a hora em que o gelo do Rio Tanana se romperá, passatempo anual dos alasquianos que inscrevem seus palpites no Nenana Ice Classic.
(O vencedor deste ano levou 125 mil dólares para casa; o gelo se rompeu em 27 de abril. Mas, em 2019, o rompimento aconteceu no dia 14 do mesmo mês, o mais precoce desde que o Nenana começou em 1917).
Logo entabulamos conversa com Grog, um gigante barbado e ex-garimpeiro de ouro, cujo riso troveja como uma explosão subterrânea. Elaine, sua animada parceira, nos conta que veio de Michigan para Talkeetna uma década atrás a fim de participar do Wilderness Woman Contest (Concurso da Mulher Mateira), no qual impressionou os juízes com a capacidade de manter ardendo um círculo de fogo de madeira achada na praia para afastar os ursos. Mais tarde, no Leilão dos Solteiros, Grog chamou a sua atenção, e o romance prosperou.
Ficamos na pousada Talkeetna Roadhouse, um prédio de madeira de 1917. Na sala de jantar, as paredes de tábuas brancas são enfeitadas com gráficos de montanhismo e bandeiras multicoloridas das várias expedições que usaram o hotel como base para subir o Denali e o monte Foraker. Há dois cardápios no quadro-negro: “Café da manhã” e “Não café da manhã”.
“A única coisa ruim da Roadhouse”, nos avisou a bartender da Fairview, “é aquela padaria. Quando o cheiro do pão fresco de fermentação natural vem subindo a escada às quatro da matina, a gente acorda e não conse-gue mais dormir.”
Ela não estava errada. Na primeira manhã, nos entupimos de pães de canela recém-assados, panquecas de fermento natural e bacon crocante curado no xarope de bordo. No Alasca, tudo vem com bacon: a Spenard Roadhouse, em Anchorage, que serve comida tradicional americana de alta qualidade, tem até um Bacon do Mês.
Alguns hóspedes estão aqui para seguir o Iditarod; outros são esquiadores de fundo, jovens e esguios, ou pilotos de motoneve de meia-idade. Um holandês idoso nos conta que vem à Roadhouse há quase 40 anos.
Ele não escala nem esquia mais, mas volta “só para rever todos os amigos que fiz”. Enquanto aconchego nas mãos a terceira caneca de café na acolhedora sala de jantar, inspirando o aroma de pinheiro e pão fresco à medida que a neve cai suavemente lá fora, entendo por quê.
O lugar dá uma sensação de estar isolado do mundo, mas embutido nele com firmeza.
Em nossa última noite em Talkeetna, jantamos no Denali Brewpub: um rolo de carne de rena, seguido por uma fatia de torta de manteiga de amendoim. Mais tarde, caminho sozinho até o fim da rua principal, além das fachadas atarracadas de madeira vermelha da Nagley’s Store e do West Rib Pub & Grill, e vou até o rio congelado para ver o Denali à luz da lua.
Escolho um caminho ladeado por bétulas curvadas pelo peso da neve e logo me vejo no gelo. O silêncio me envolve como um cobertor. As montanhas distantes são uma larga tira branca e brilhante contra os painéis cinza-claros da planície e do céu. Ponha uma moldura em volta e teremos uma obra de Rothko.
A vista do Denali parece inalterada e inalterável, mas a situação é mais instável do que parece. “Ursos, alces, terremotos, raios, nevascas, incêndios florestais… o Alasca sempre vai dar um jeito de nos matar”, observou alegremente na Fairview um rapaz bronzeado com um boné de loja de ração.
A última ameaça é cada vez mais importante. O Alasca está esquentando muito mais depressa do que os outros estados americanos por causa da perda do gelo polar e do crescente desmatamento.
No dia seguinte, vamos a Homer, na ponta da Península de Kenai. É uma cidade à beira-mar bem espalhada, com galerias de arte e livrarias de madeira e uma restinga estreita que se desenrola pela baía como a língua de uma serpente rumo aos picos do Parque Estadual da Baía de Kachemak.
Num verão típico, navios de cruzeiro atracam aqui, os estacionamentos para trailers e motocasas lotam, e os bares e restaurantes correm para atender à demanda.
Mas, fora da temporada, é tranquilo. Fazemos caminhadas pela Praia do Bispo coberta de neve e, na Two Sisters Bakery, comemos pão de chocolate com café no desjejum.
Homer é um centro do movimento de culinária local do Alasca, caracterizado pela breve temporada agrícola do estado, pela caça indígena e, naturalmente, pelos frutos do mar. A cidade se anuncia como a Capital Mundial da Pesca de Halibute.
Os caranguejos vermelhos são macios e enormes; por toda parte encontramos vieiras-do-pacífico, lingueirões, amêijoas-gigantes, camarões-do-alasca e salmão selvagem. O salmão-rei e o salmão-vermelho são os mais valorizados das cinco espécies de salmão que abundam nessas águas. Um filé grosso do último, grelhado sobre lascas de amieiro na movimentada e barulhenta Glacier Brewhouse, em Anchorage, foi um dos melhores pratos de peixe que já provei.
Outro destaque gastronômico é o food truck da Jakolof Bay Oyster, que, nas tardes de sexta-feira e sábado, fica ao lado da sala de prova da cervejaria Homer Brewing Company. Ele oferece ostras fresquíssimas, pescadas na véspera pela mulher que as serve, e ficam maravilhosas acompanhadas de uma das cervejas Porter, amargas e maltadas, da cervejaria.
Reservamos uma cabana numa crista por causa da vista da Baía de Kachemak até a Geleira Grewingk, mas neva tanto que não conseguimos enxergar muita coisa. Só que ficar preso em casa é igualmente emocionante. Certa manhã, somos acordados por um pequeno terremoto. Depois, enquanto tomamos o café da manhã, um filhote de alce passa por nossa janela, com suas pernas compridas e magras.
Às vezes, a única maneira de obter uma visão clara das coisas no Alasca é voando – e, com frequência, é a única maneira de chegar aonde se quer. Quando a neve para, pegamos o voo das 11h20 da Smokey Bay Air até o antigo povoado comercial russo de Seldo-via.
Sobrevoamos a Restinga de Homer e seguimos para o sul pela costa até pousar na pista estreita junto à água do Brejo de Seldovia, que serpenteia entre grupos de pinheiros como uma tira de seda azul-acinzentada.
“Virem à direita; a caminhada até a cidade não é longa”, informa o piloto depois de desembarcarmos enquanto descarrega caixotes de hortaliças frescas.
Cruzamos uma ponte de aço e paramos ao ver as cabanas coloridas que se elevam da água sobre palafitas. Foram lar de pescadores na época da breve explosão da pesca de arenque durante a década de 1920. A fumaça sobe de chaminés polidas. Seldovia é silenciosa, a não ser pelo crocitar gutural de um corvo solitário.
Subimos degraus nevados até a Igreja Ortodoxa Russa de São Nicolau, revestida de tábuas brancas e turquesa. Desde meados do século 18, os comerciantes de peles russos, atraídos pela população de lontras, focas, marmotas, castores e ursos, estabeleceram postos avançados defendidos por guarnições russas.
Hoje, as comunidades de Velhos Crentes (que romperam com a igreja ortodoxa em meados do século 17 por conta de divergências doutrinárias) podem ser encontradas em aldeias como Nikolaevsk e Voznesenka. É possível avistá-los fazendo compras em Homer, as mulheres de saia comprida com lenços coloridos na cabeça.
Os tsares se agarraram ao Alasca até 1867, quando o venderam aos Estados Unidos por 7,2 milhões de dólares. O negócio foi considerado uma piada, mas, depois que ali se descobriu ouro a partir da década de 1870 e petróleo (que hoje gera 80% da receita do Alasca) na de 1960, ficou claro que o preço foi baixíssimo. Os nativos nunca foram consultados, é óbvio.
Uma série de processos na justiça culminou, em 1971, com a Lei de Indenizações dos Nativos Alasquianos, que lhes concedeu 17 milhões de hectares e quase 1 bilhão de dólares – valor provavelmente pequeno por venderem a terra sob seus pés.
Depois de voltar a Seldovia, pegamos um táxi até a Baía Jakolof, onde, num quebra-mar cercado de leitos de ostras, esperamos para embarcar num barquinho para Homer. Paramos numa ilha minúscula a fim de buscar uma família de Anchorage que está construindo uma cabana.
Ajudamos a mãe, o pai e os dois filhos com a bagagem. “Vai ser tranquilo aqui, sem dúvida”, diz o comandante. “A única coisa que nos acorda é o ruído das jubartes batendo a cauda na água.”