Talvez você nunca tenha pensado em viajar para Varsóvia, a capital da Polônia. Mas depois de ler este post você colocará esta cidade na sua lista de viagem.
No lendário café A. Blikle em Varsóvia, são onze horas. Quando me sento, ofuscada pelo prato suntuoso, pego o celular e fotografo o sortimento de pãezinhos maravilhosos, ovos mexidos, presunto, queijo e paczki irresistíveis (os sonhos poloneses) à minha frente. Uma hora se passa, e peço a conta. O garçom uniformizado me sugere que guarde a carteira. O homem da mesa atrás de mim já pagou tudo. Viro a cabeça. Meu benfeitor foi embora, preferindo permanecer anônimo. Um cavalheiro polonês.
Assim é Varsóvia, uma cidade de culinária deliciosa, onde ainda há cortesia.
Para os que voltam depois de uma ausência prolongada, a cidade transpira um tipo de poesia; uma art de vivre que vem do passado. “Algo indefinível”, confessa Elizabeth Gdulewicz-Jelen, escultora que fugiu do regime comunista e se instalou em Montreal uns quarenta anos atrás.
Em Varsóvia, Elizabeth gosta de se demorar nos bancos de Chopin. Criados para marcar o 200º aniversário de nascimento do compositor polonês (1810-1849), os quinze bancos espalhados pela cidade tocam trechos de suas obras. Basta apertar um botão que os passantes escutam acordes maravilhosos de piano enquanto fitam o Castelo Real ou as fortificações ao longo do Rio Vístula.
Monumento de Chopin localizado na parte superior do Parque Royal Baths de Varsóvia, também conhecido como Parque Łazienki.
Chamada de Cidade Fênix por renascer das cinzas depois de ser praticamente aniquilada durante a Segunda Guerra Mundial e devastada por quatro décadas de escassez comunista, Varsóvia ainda oscila entre isolar-se e abrir-se ao mundo.
A religião e a política
Em outubro, na véspera de minha chegada, a procissão do Rosário na Fronteira reuniu manifestantes nas fronteiras do país e nos aeroportos, considerados portas de entrada, como no Aeroporto Chopin de Varsóvia, a menos de vinte minutos da capital.
Armados com terços e imagens santas, os fiéis reafirmaram o catolicismo da Polônia e a necessidade de protegê-lo da secularização e do islamismo. Mas já faz algum tempo que o governo conservador efetivamente fechou as portas aos que buscam asilo, e muitos observadores afirmam que a ameaça à nação representada pelos estrangeiros é praticamente imaginária.
A Polônia está passando por uma grande crise. Desde 2015, o partido conservador Lei e Justiça (PiS, na sigla polonesa) ampliou medidas para restringir o poder judiciário e amordaçar a imprensa. Toda semana, Varsóvia é palco de manifestações e contramanifestações. Uma nação dividida.
Krzysztof Materna, opositor do regime na época comunista e um dos autores de uma série de TV da década de 1990 recentemente ressuscitada na internet, vê as ações do governo atual como uma ameaça à democracia. “O patriotismo de inspiração estatal tem um efeito extremamente corrosivo na sociedade”, diz ele.
Com quase 70 anos, Materna continua a condenar o abuso de poder do governo. A peça que dirigiu em um teatro em Varsóvia no terceiro trimestre de 2017 declarava a hostilidade ao pensamento racista da direita e aos fósseis que conseguem soprar vida nova nos demônios sombrios do passado.
Atrás do volante de seu Audi bem equipado, Materna está longe de ser um hippie sentimental. Ele acredita que liberdade também é liberdade de mercado e liberdade de ascender financeiramente. Mas, como explica, o colapso do bloco oriental deixou muitos em dificuldades, e esse mesmo abismo entre ricos e pobres é parcialmente responsável pelos problemas que hoje abalam a Polônia.
Ainda assim, Varsóvia continua uma cidade receptiva, claramente aliviada por ter sobrevivido à crueldade do século 20, que jogou loucos como Hitler e Stalin neste mundo (e na Polônia).
A cidade
Poucos transeuntes percorrem as ruas imaculadamente bem cuidadas. As mulheres se vestem com elegância, as livrarias são um tesouro para os amantes de livros (não para os amantes de bibelôs, porque eles estão em casa), as igrejas se enchem aos domingos e a maioria dos casais jovens leva um carrinho de bebê.
Catedral de St. Florian , mais formalmente conhecida como Catedral de São Miguel Arcanjo e São Floriano Mártir.
Como todas as capitais do mundo, Varsóvia abriga museus com exposições de vanguarda e bares de jazz, punk, rock e gays. Mas a liberdade nem sempre é óbvia. Na noite em que fui a um bar de lésbicas (evento de uma noite só em um espaço fugaz), o local era protegido por musculosos leões de chácara – prova de que esse tipo de celebração tem seus riscos.
No centro da cidade, cafés carregados de doces e restaurantes elegantes brotaram nos locais em que, atrás da cortina de ferro, os moradores faziam fila para adquirir itens básicos. Onde havia contrabandistas nos becos vendendo itens de luxo, há hoje um centro urbano genuíno, com instituições financeiras, arranha-céus revestidos de vidro e shoppings movimentados. As estações do metrô parecem galerias de arte; os cemitérios parecem jardins públicos; e os jardins públicos, florestas encantadas.
Como os ex-compatriotas, a escultora Elizabeth se orgulha ao ver o crescimento econômico do país, impelido pela força do setor fabril.
Quase trinta anos se passaram desde a queda do comunismo. Em vários aspectos, os varsovianos deram as costas a esse capítulo de sua história. Um exemplo é o imenso Palácio da Cultura e da Ciência, símbolo desdenhado da arquitetura stalinista que, depois de muito debate, os cidadãos decidiram preservar.
“Acho que acabamos rindo dele”, observou Elizabeth. “Não podemos esquecer o que o país passou, mas podemos encará-lo com humor.”
Paradoxalmente, os que se dispõem a apagar todos os vestígios do regime adotaram uma história revisionista digna do próprio stalinismo da época da Guerra Fria. Um vereador de direita afirmou que “Imagine”, de John Lennon, é um manifesto comunista e tentou mudar o nome da rua que homenageia o compositor.
O Palácio da Cultura e Ciência é um arranha-céu, com 237 metros. Edificado na cidade de Varsóvia.
Cidade criativa
Varsóvia sempre deu um jeito de desafiar autocratas e políticos desprovidos de bom senso.
“Na década de 1960, quando eu estava na faculdade de Artes, os artistas tentavam todos os truques para não serem silenciados pela censura. E, durante muito tempo, deu certo!”, conta Elizabeth.
Hoje, com as autoridades efetivamente ameaçando apagar todos os nomes de rua com conotação comunista, uma marca de roupas ostenta o passado de forma divertida.
Pan Tu Nie Stal recorda as longas filas de clientes que passavam horas diante de vitrines vazias esperando a abertura de estabelecimentos como os açougues. Elizabeth traduz: “Quem tentasse furar a fila era rejeitado com ‘O senhor não estava aqui!’”
A butique da rua Koszykowa está cheia de roupas e acessórios inspirados na tipografia e na iconografia do período comunista: meias que recordam os apartamentos sem aquecimento, canecas antigas e muito mais reminiscências coloridas e engraçadas dos anos sombrios.
Há uma sensação parecida – sem o humor – nas últimas “leiterias” da capital. Refeitórios pouco decorados que servem pratos do velho mundo (Boschi polonês e costeleta de porco empanada) que, na minha opinião, só são apreciados por habitantes locais. A leiteria Bambino, na rua Crueza, é uma das raras cantinas a sobreviver aos anos soviéticos. Lá, funcionários públicos de cara fechada atrás do balcão entregam o prato aos clientes.
Localizada na Praça da Cidade Velha, a Estátua da Sereia de Varsóvia (Syrenka Warszawska) está associada a uma das lendas românicas mais famosas da Polônia.
O novo e o velho. O visível e o invisível. O conhecido e o desconhecido. Quem visita a cidade pela primeira vez geralmente leva consigo seus pontos turísticos capturados em fotografias: monumentos, teatros, igrejas, chafarizes, refeições deliciosas. Mas, quando perambulam pela Cidade Velha, se demoram em um banco de parque ou vão a festivais de música barroca. Eles raramente percebem os fantasmas, cuja presença é palpável em cidades antigas como Varsóvia.
Embora alguns levem o nome de ditadores apavorantes, outros, como a sereia de Varsóvia, são coisa de sonho. Símbolo da cidade, ela sai de um dragão brandindo espada e escudo.
Como as outras sereias, a de Varsóvia cantava. Mas sua antiga canção foi esquecida há muito tempo. Na cidade moderna, ela é onipresente, uma refugiada minúscula levada pelo rio, uma santa minúscula que transcendeu todas as religiões, partidos políticos e governos.
Por Hélène de Billy