Muitas das mudanças que fizemos em nossa rotina por causa da quarentena vieram para ficar. Saiba o que os especialistas pensam sobre elas.
“Como será o amanhã?” é uma pergunta que a humanidade se faz desde sempre e que está muito bem representada no otimista samba-enredo O Amanhã, da escola de samba União da Ilha do Governador, de 1978. Nesse momento, porém, em que vivemos a pandemia da Covid-19, quando o planeta ultrapassou a marca dos 7 milhões de casos confirmados da doença e mais de 400 mil mortes (números do dia 11 de junho), esse questionamento ganha um tom mais dramático. Todos queremos saber como será o mundo pós-pandemia. Será um lugar mais humano, empático e colaborativo de se viver? Ou, ao contrário, será mais egoísta, totalitário e competitivo? Há muitas dúvidas e poucas certezas.
“Não existe um único futuro. Há futuros possíveis”, observa Sabina Deweik, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, caçadora de tendências e futurista. “Temos agora a possibilidade de escolher outro caminho, mais colaborativo, solidário, desmaterializado, mais em linha com esse novo mundo.”
Uma das poucas certezas que temos é que o novo coronavírus está agindo como um “acelerador de futuros”. É como se o estado de pandemia declarado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 11 de março tivesse apertado a tecla de fast forward e avançado rapidamente a vida no planeta Terra. Mudanças que, em sua velocidade normal, levariam anos para acontecer se tornaram realidade em poucas semanas, como, por exemplo, a adoção do home office. Mas, há outros: a telemedicina, o e-commerce, a educação a distância. “As pessoas estão tendo um ‘curso intensivo de vida virtual’ nesta pandemia”, afirma Yuri Lima, pesquisador do Laboratório do Futuro. “Algumas das práticas adotadas durante a pandemia permanecerão e atividades como alimentação, compras, trabalho e educação serão feitas de maneira cada vez mais virtual.”
Por ironia do destino, a pandemia da Covid-19 conferiu aos habitantes das Américas um poder cobiçado por todos: o de enxergar o futuro. E não estamos falando aqui, como diria a letra do compositor João Sérgio, de “bola de cristal, jogo de búzios, cartomante…” Não. Pela primeira vez na história da raça humana, bastava ver o que estava acontecendo na Europa e na Ásia – os primeiros continentes atingidos pela Covid-19 – para saber, dali a algumas poucas semanas, o que aconteceria nas Américas do Sul, Central e do Norte.
Mas o que fizemos com esse “superpoder” que nos foi dado? “Desperdiçamos a oportunidade de tomar precauções e evitar o pior, e continuamos a acreditar que o que aconteceu por lá, não aconteceria por aqui”, diz Beia Carvalho, palestrante futurista e presidente da Palestras Five Years From Now. “Podíamos ter aproveitado melhor essa oportunidade inédita de ver o futuro.”
Por essas e outras que nem todo mundo compartilha da euforia de acreditar que o mundo pós-pandemia será outro, bem diferente do atual. “Não teremos nada novo, nem normal”, diz João Vitor Rodrigues, doutorando em Comunicação Social pela PUC-Rio e professor da ESPM. “Não tem nada de normal viver em um mundo tão desigual e que vai continuar assim, talvez até mais do que agora. Nada vai ser transformado em tão pouco tempo.”
Jaqueline Weigel, CEO da W Futurismo, procura manter o otimismo. Não é de hoje, diz, que o mundo vinha dando sinais claros de falência. “Não há como retomar algo que não existe mais, que já ficou para trás. Não mudar custará mais caro em todos os sentidos do que recomeçar um mundo mais ético, mais distribuído e sustentável.”
O que mudaremos em nosso modo de ver o mundo ainda não sabemos, mas fato é que, em alguns aspectos, nosso dia a dia certamente já começou a mudar. Eis alguns exemplos:
Casa
Nos desenhos animados da Hanna-Barbera, a casa dos Jetsons, repleta de engenhocas hi-tech, era o sonho de consumo de muitas famílias. Estamos quase chegando lá. Na opinião dos futuristas, a casa pós-pandemia será mais smart que nunca. A começar pela porta da frente. No lugar de fechaduras e maçanetas – focos de transmissão do novo coronavírus –, sensores biométricos com comando de voz. Por causa da pandemia, alguns ambientes ganharam relevância. O hall de entrada é um deles. Funciona como uma espécie de “cabine de descompressão” dos submarinos. No caso, “cabine de descontaminação”. É ali, em meio a cestos, bancadas e cabideiros, entre outros mobiliários, que os moradores poderão guardar os sapatos, pendurar as roupas e higienizar as mãos. Áreas abertas e ensolaradas, como varandas e terraços, ambientes verdes e acolhedores, como hortas e jardins, e pequenos santuários, com imagens e símbolos religiosos, também foram revalorizados. Outras fortes tendências: espalhar pela casa objetos que contem histórias da família que vive ali, como porta-retratos ou ímãs de geladeira, e transformar as antigas dependências de serviço em escritórios particulares. “Até recentemente, o tempo era nosso grande luxo. Estávamos sempre acelerados. Hoje, o espaço está valorizado”, afirma Sabina Deweik.
Trabalho
Por que encarar ônibus cheios e trânsito lento, se você pode tomar banho, trocar de roupa e dar alguns passos até o escritório? Ou, então, por que pegar uma ponte-aérea até São Paulo se pode fazer reunião por videoconferência? Ok, nem todo mundo pode se dar ao luxo de aderir ao home office – ou “escritório em casa”, em livre tradução. Grandes empresas também sofrerão mudanças, como número reduzido de passageiros nos elevadores, demarcações no chão para manter o “espaço de segurança” entre os funcionários e escala de turno nos refeitórios para evitar aglomerações. Áreas de convivência, como cantinas e copas, serão temporariamente desativadas. Nos escritórios, os espaços abertos, com mesas compartilhadas, cederão espaço a estações de trabalho, com biombos e divisórias.
“O equilíbrio é algo que está sendo repensado e trará novas prioridades e propostas de vida”, afirma Fernanda Bueno, consultora de negócios do Sebrae-SP. “Com a rotina menos acelerada, mais refeições com a família e menos tempo no trânsito são algumas das tendências para a vida pós-pandemia.”
Educação
“Em breve, o aluno não precisará mais ir à escola para participar de uma aula expositiva”, afirma Luciano Sathler, do Comitê de Educação Básica da Associação Brasileira de Educação a Distância (ABED). “Uma das possibilidades é que ele assista à aula de casa e, com a turma, estude com metodologias ativas, seja com a robótica, interação em grupo ou na construção colaborativa do conhecimento.”
No retorno das aulas presenciais, que ocorrerá de forma gradual, testemunharemos o reforço na higiene, o uso de máscaras, o espaçamento de carteiras, a higienização frequente das mãos, aulas aos sábados e no contraturno. “Enquanto não houver uma vacina aprovada em larga escala, essas recomendações devem continuar”, diz Brasilina Passarelli, vice-diretora da ECA/USP e coordenadora científica do Núcleo de Apoio à Cultura e Extensão – Escola do Futuro/USP. “Outras tendências são integrar aprendizagem e lazer em vídeos e jogos, mudança disruptiva da relação entre professor/aluno, e a busca por desenvolver inteligência sinérgica em vez de inteligência competitiva.”
Espaços públicos
Beijos, abraços e cumprimentos serão substituídos por acenos, mesuras e piscadelas. Pelo menos, por algum tempo. A rotina vai mudar, e muito, nos espaços públicos. Até uma simples ida a um café, bar ou restaurante não será mais a mesma. O cardápio de papel – lembra dele? – vai virar peça de museu. Em seu lugar, os fregueses farão os pedidos por meio de menus virtuais, acessados por QR Code no celular, ou usarão modelos descartáveis. Além disso, o menor número de mesas deve garantir a distância de, pelo menos, um metro entre os clientes. Uma solução encontrada por um restaurante na Holanda foi servir as refeições em espaços privativos semelhantes a estufas.
O uso de máscara nos locais públicos será obrigatório. Quem desobedecer à lei terá de pagar multa. Para evitar aglomeração em trens, ônibus e metrôs, muitos países estão estimulando a circulação de bicicletas, aumentando a malha cicloviária,instalando novos bicicletários e alargando o tamanho das calçadas. Em algumas capitais da Europa estão sendo usados “túneis de desinfecção”, que aqui no Brasil não são recomendados pela Anvisa em razão do risco de “lesões dérmicas, respiratórias, oculares e alérgicas”.
Alguns hábitos serão definitivamente incorporados à rotina, como o uso de máscaras de proteção (cada vez mais coloridas e “descoladas”), a higienização com álcool em gel (o item estará presente em bolsas, pastas e mochilas) e a manutenção de distanciamento social nas ruas, nas praças e nos jardins. As viagens de turismo podem demorar um pouco a voltar. A maioria dos países tem permitido apenas deslocamentos internos ou, na melhor das hipóteses, entre países vizinhos. Os voos internacionais, estima-se, ficarão mais caros. Em muitos lugares, banhos de sol e esportes coletivos permanecerão proibidos por algum tempo nas praias.
Consumo
Não se assuste se, da próxima vez que fizer uma compra on-line, um drone entrar pela janela de seu apartamento ou pousar na varanda de sua casa para fazer uma entrega. Estados Unidos, Austrália e Finlândia, entre outros, já estão adotando veículos aéreos não tripulados para atender aos pedidos dos clientes. Outro recurso utilizado nos Estados Unidos e na China é a van-robô, que pode carregar mercadorias.
Dos hábitos adquiridos durante a quarentena, alguns devem perdurar: mais produtos comprados, menos idas ao supermercado. Alguns produtos entraram na rotina de muitas famílias – o Lysoform, por exemplo. “Não me lembro de ter comprado esse desinfetante antes”, conta Marcelo Boschi, professor de marketing da ESPM Rio. “Daqui para a frente ele fará parte da rotina de limpeza da casa.” Alguns supermercados adotaram gabinetes de acrílico nos caixas e marcações de distância no piso. Nos shoppings, funcionários farão a aferição de temperatura e vão limitar o número de clientes. As telas dos gadgets serão uma extensão das vitrines das lojas. Mas uma boa parte dos consumidores continuará fazendo compras pela internet, por meio do comércio eletrônico, e quitando débitos com pagamentos por aproximação ou reconhecimento facial. Algumas lojas vão adotar o modelo scan & go – os clientes selecionam os produtos, escaneiam os rótulos e pagam as compras, sem interação com os funcionários. “Além de comprar mais o que é essencial e menos o que é supérfluo, aumentou o número de consumidores que planejam melhor suas compras, avaliam os impactos do seu consumo no meio ambiente e priorizam produtos de origem local”, avalia o engenheiro ambiental Bruno Yamanaka, analista de conteúdos e metodologia do Instituto Akatu.
Medicina e saúde
Foi-se o tempo em que o paciente precisava sair de casa para ser atendido pelo seu médico de confiança. Durante a crise causada pelo coronavírus, o recurso da telemedicina foi aprovado em caráter emergencial pela lei 13.989/20. Terminado o isolamento, porém, é provável que seja votada outra lei para regulamentar essa prática. Por enquanto, médicos de diferentes especialidades podem realizar consultas on-line. O sigilo médico, ao vivo ou a distância, continua valendo. “O mais indicado é que a consulta virtual seja precedida de ao menos uma consulta presencial, e seja o prosseguimento de uma relação médico-paciente”, explica o Dr. Donizetti Giamberardino, primeiro vice-presidente do Conselho Federal de Medicina (CFM). “Mas, no período atual, é permitido que a primeira consulta seja virtual, recomendando-se que, no futuro, ocorra o atendimento pessoal.”
Além de médicos, psicólogos também podem atender seus pacientes por meios tecnológicos. “O ideal é que a terapia on-line aconteça em ambiente tranquilo, reservado e silencioso, sem risco de interrupção”, orienta Ana Sandra Fernandes, presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP).
Pelo TeleSUS, serviço disponibilizado pelo Ministério da Saúde, qualquer pessoa pode tirar dúvidas e ter um primeiro atendimento com um profissional de saúde. O TeleSUS pode ser acessado pelo Disque-Saúde (136),
pelo Chatbot (em www.saude.gov.br), pelo aplicativo Coronavírus SUS ou
por busca ativa. No primeiro dia de junho, os canais do TeleSUS já registravam no total mais de 62,2 milhões de atendimentos.
Lazer
Você se lembra da última vez em que assistiu a um show de seu artista favorito, torceu pelo seu time do coração ou curtiu um cineminha sábado à noite? Eventos em casas de espetáculo, estádios de futebol ou salas de cinema, entre outros, devem estar entre os últimos serviços a reabrir para o público. Até lá, o jeito é se contentar com a exibição de lives – só a da Marília Mendonça, em 8 de abril, registrou 3,3 milhões de acessos –, o lançamento de e-books – durante a pandemia, autores como o poeta Fabrício Carpinejar, os pensadores Mario Sergio Cortella e Leandro Karnal e o psiquiatra Augusto Cury publicaram títulos novos – ou a adesão a plataformas de streaming. “Como teríamos sobrevivido, trancados em casa, sem qualquer tipo de arte?”, questiona a escritora Rosana Rios, organizadora do livro Depois da quarentena: antologia futura de um presente confinado. “Há pessimismo, sim, em vários contos. Afinal, vivemos uma situação inusitada e perigosa. Mas o otimismo e a vontade de viver se sobressaem na maioria deles.”
Aos poucos, novas regras no mundo do entretenimento são testadas. Nos estádios de futebol da Alemanha, todos de portões fechados, jogadores são proibidos de trocar abraços na hora do gol. Em parques temáticos da China, carrinhos, assentos e barras de segurança são limpos a cada troca de frequentadores. Nos estúdios de TV da Austrália, os cinegrafistas criam a ilusão de que os atores, embora cumprindo o distanciamento social, estão próximos uns dos outros. Nas livrarias de Portugal, os consumidores são orientados a higienizar as mãos antes de manusear os livros nas estantes. Noites de autógrafo? Só pela internet. Festivais literários? Ao ar livre. Quando tudo voltar ao normal, bilheterias on-line, restrição de público e funcionários mascarados serão comuns.
Os cinemas drive-in estão se reinventando. Hoje é possível assistir a filmes, como nos velhos tempos, ou a shows de rock, com telas de LED de alta definição. Neste caso, os aplausos podem ser substituídos por buzinaços.
POR ANDRÉ BERNARDO