Aprovado pela Anvisa, o spray nasal de Escetamina é considerado um dos maiores avanços no tratamento para depressão registrado nos últimos 70 anos.
Paula Vieira | 8 de Novembro de 2020 às 18:03
A depressão é uma doença psiquiátrica séria que precisa de diagnóstico e acompanhamento médico, além do tratamento regular. Os principais sintomas são desânimo, oscilações de humor, perda de interesse em atividades que antes eram prazerosas, tristeza profunda e insônia.
Os pacientes com depressão costumam procurar atendimento médico somente após identificarem a presença dos sintomas com maior frequência, o que pode levar um tempo.
Por isso, é importante que este diagnóstico seja feito o quanto antes, pois, em casos mais graves, a doença pode gerar pensamentos suicidas e o cometimento do ato.
Estima-se que mais de 300 milhões de pessoas ao redor do mundo sofram com esse transtorno, que contribui para o aparecimento de outras doenças e afeta mais as mulheres. Só no Brasil, são cerca de 10 a 12 milhões de pessoas com depressão.
Para atender os casos mais graves, a Anvisa aprovou no início desta semana o medicamento Spravato (Escetamina), derivado da Cetamina, e considerado um grande avanço no tratamento de problemas psiquiátricos.
“O que diferencia a gravidade da depressão é, principalmente, o quanto aqueles sintomas impactam na vida da pessoa. Quadros mais graves podem ser mais difíceis controlar com doses baixas de medicação, e a psicoterapia tem o objetivo de auxiliar o paciente para que ele trabalhe melhor suas emoções. Caso ele faça o tratamento com uma medicação e não funcione, é indicado a mudança no esquema. Se essa mudança for ineficaz, deve-se realizar uma nova mudança. Se após 3 mudanças, com tratamentos seguidos de forma adequada, o paciente continuar com sintomas depressivos e não tiver resposta satisfatória, consideramos que é um caso de depressão refratária, de grau 3. A Cetamina só é indicada nesses casos, e o paciente deve fazê-la em ambiente controlado e em uma instituição de saúde adequada para isso”, explicou Dr. Lucas Hauaji, médico da Casa de Saúde Saint Roman, referência em psiquiatria no Estado do Rio de Janeiro.
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O medicamento em forma de spray inalável faz efeito em até 4 horas e reduz os sintomas da doença em apenas um dia, mostrando eficácia maior do que os antidepressivos comuns, que levam mais de três semanas de uso para resultarem em alguma melhora.
O mecanismo de ação da Escetamina também funciona de maneira diferente.
Enquanto os fármacos, no geral, buscam estabilizar os níveis dos neurotransmissores responsáveis pela sensação de bem-estar (dopamina, noradrenalina e serotonina), o principal componente do Spravato atua diretamente nos receptores de glutamato, molécula que trabalha na melhoria da conexão entre os neurônios e estimula áreas do cérebro ligadas às emoções.
A reação nos pacientes com depressão grave, que não respondiam ao tratamento convencional, – o que acontece com 30% das pessoas, sendo mais comum do que se imagina -, fez com que o Spravato recebesse o título de maior avanço médico no tratamento da doença, desde a criação dos primeiros antidepressivos, em meados dos anos 50.
“O estudo mais expressivo, realizado em 2017, apontou uma resposta em até 40% dos pacientes que usaram Escetamina em sua dose plena por via intranasal. Apesar de uma rápida resposta, onde após 24h de medicação já se via uma melhora nos pacientes que respondiam, muitos tinham efeitos colaterais importantes. Por isso, apesar de ser indicada para casos refratários, só usamos ela quando de fato as outras alternativas já se esgotaram. Um outro problema é que não temos certeza de como funciona o mecanismo antidepressivo da Escetamina. Tem várias hipóteses sobre o motivo de ela ter esse efeito, mas ainda não é completamente claro”, concluiu o Dr. Lucas Hauaji, Médico da ala psiquiátrica da Casa de Saúde Saint Roman.
A farmacêutica Janssen, que pertence a Johnson & Johnson e desenvolveu o spray, apoiou cinco testes com mais de 1700 pessoas que apresentaram resistência aos tratamentos convencionais.
Os resultados mostraram que os pacientes que combinaram a Escetamina inalável com o tratamento oral, além da terapia, tiveram melhoras mais significativas do que fazendo uso do comprimido com placebo.
“De fato, a chegada da esquetamina é um evento muito importante na história do tratamento da depressão. Por enquanto, contudo, trata-se de um medicamento ainda em fase de consolidar seu valor clínico, agora que começa a ser utilizado por grandes populações.
Ninguém tem ainda uma vasta experiência com essa substância, ficando restrita quase que completamente ao âmbito dos pesquisadores.”, disse o Dr. Mário Eduardo Costa, psiquiatra e professor do departamento de Psicologia Médica e Psiquiatra da UNICAMP.
A pesquisa apoiada pela Janssen ainda aponta que os voluntários com a doença controlada apresentavam risco de recaída 51% menor se mantivessem o uso da Escetamina uma vez a cada quinze dias. Outro resultado interessante é que 70% dos pacientes tiveram melhora dos sintomas.
Já as pessoas que tinham alto risco de suicídio manifestaram redução dos sintomas depressivos, mas não no comportamento e nas ideias suicidas. Por conta disso, o medicamento deve agir em conjunto com uma transição para outro tratamento.
“Ela tem que ser ministrada junto com uma mudança para um novo antidepressivo. A Escetamina atua fora do sistema de monoaminas, que é a serotonina, a noradrenalina e a dopamina, ações mais tradicionais dos antidepressivos. Em tese, ela tem uma ação sinatogênica, que atua na formação de sinapse (por onde o impulso nervoso é transmitido). Esse é o diferencial da Escetamina em relação aos antidepressivos comuns”, explicou o Dr. Carlos Cais, Professor colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
A aplicação do Spravato (Escetamina) será realizada somente em hospitais e clínicas médicas, pois o medicamento pode causar reações adversas, como tontura, sonolência, aumento da pressão arterial, humor eufórico, sensação de estar fora do corpo (dissociação) e vertigem.
Sendo assim, é ideal que profissionais estejam próximos do momento da inalação e durante seu efeito colateral.
Usada em países como Estados Unidos, Canadá e parte da Europa, a Escetamina é o primeiro psicodélico a se tornar oficialmente um medicamento para tratamento de transtornos psiquiátricos.
“Em termo de pesquisa, os psicotrópicos são estudados para tratamentos de vários casos, como ansiedade, depressão e transtorno de estresse pós-traumático. Há uma espécie muito grande de transtornos mentais que já têm pesquisas mostrando resultados, embora ainda haja uma distância para chegar ao tratamento como a Escetamina, que é um medicamento aprovado, com todos os protocolos e pesquisas já feitos e que está em nível de comercialização. Mas esperamos um avanço nas próximas décadas, com uma série de transtornos mentais sendo tratados com psicodélicos.”, analisou o Dr. Carlos Cais.
A ciência trabalha arduamente para entender o funcionamento dos psicodélicos como antidepressivos.
Por enquanto, sabe-se que suas reações químicas aumentam a quantidade de neurotransmissores no cérebro, principalmente a serotonina, que controla as emoções e a capacidade associativa do “órgão mestre” do sistema nervoso.
Outros efeitos são a diminuição da atividade na amígdala, que trabalha com a resposta do cérebro ao medo, e aumento da ação do córtex-pré frontal, responsável pelo raciocínio, humor e percepção.
A expectativa é de que essas substâncias sejam cada vez mais utilizadas, pois, apesar de serem proibidas na maioria dos países, elas atuam como um facilitador da psicoterapia, como também é o caso do LSD, MDMA, ibogaína e ayahuasca.
Além das drogas citadas, a psilocibina, princípio ativo da substância conhecida como “cogumelo mágico”, também tem apresentado resultados promissores.
Na última quarta-feira, um estudo da revista científica JAMA Psychiatry mostrou que a psilocibina é quatro vezes mais eficaz no tratamento da depressão comum do que os antidepressivos tradicionais.
Professor colaborador do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Dr. Carlos Cais confirma a teoria e garante que os psicodélicos podem ser revolucionários no tratamento de transtornos psiquiátricos.
“A expectativa é de que os psicodélicos sejam para a psiquiatria o que o veneno de cobras é para a cardiologia, com o desenvolvimento do Capitopril e do Enalapril, por exemplo. Toda essa geração transformadora no tratamento da depressão, na verdade, são medicamentos derivados de psicotrópicos. O trabalho com o veneno de cobras abriu um leque muito importante para a cardiologia e os psicodélicos têm o mesmo potencial, mas estamos sempre nessa expectativa, porque muitos estudos já se mostraram promissores, entretanto o medicamento não foi desenvolvido ao ponto de chegar na farmácia. É importante frisar que essas substâncias não são usadas de forma recreativa. Elas são modificadas para atuarem exclusivamente nos tratamentos psiquiátricos”, concluiu o especialista.