A pele dela está perpetuamente em fogo. Ele não sente nem uma fratura óssea. Juntos, eles podem desvendar o segredo que ajudará milhões de pessoas.
Numa escala de 1 a 10, como você classificaria sua dor? Diria que é uma dor surda ou com pontadas? Arde ou pinica? Conheça abaixo os casos que intrigam a medicina.
Steven Pete
STEVEN PETE, 37 ANOS – Doença neurológica rara: Insensibilidade congênita à dor. Foto: Cait Oppermann
Pois Steven Pete não faz ideia de como é. Sentado num café em Longview, no estado americano de Washington, ele me conta que não consegue imaginar dores ou pontadas, muito menos a aflição da neuropatia periférica que deixa milhões de pessoas acordadas à noite ou viciadas em comprimidos. Ele nasceu com um raro transtorno neurológico chamado insensibilidade congênita à dor e, há 37 anos, não importa o ferimento, ele dá nota 1 ou perto de 1 na escala da dor. Sendo assim, como nunca aprendeu a evitar lesões, que é a única utilidade da dor, ele se machuca muito. De fato, quando lhe pergunto quantos ossos já fraturou, ele dá uma risadinha.
“Na verdade, ainda não contei”, diz ele. “Mas deve ficar por volta de setenta ou oitenta.”
Há alguns anos, Steven notou que o movimento do braço e do ombro esquerdos estava esquisito. As costas também estavam estranhas. Ele fez uma ressonância. O médico olhou o resultado e fitou o paciente com descrença. “Você tem três vértebras fraturadas.” Acontece que Steven machucara as costas oito meses antes, quando descia uma encosta coberta de neve numa câmara de ar.
Hoje, em todo o corpo, Steven tem “uma sensação estranha que se irradia”, como diz ele, um desconforto generalizado, mas não a dor que eu e você conhecemos. Seja como for, ele e outros nascidos com esse transtorno são comparados a super-heróis. Ele mesmo tem um desenho emoldurado de um personagem de armadura completa com as palavras “Pete sem Dor”. Mas Steven sabe que não é assim. Se sentisse dor, diz ele, provavelmente estaria preso ao leito. “Me preocupo o tempo todo quando ele trabalha com as ferramentas elétricas ou faz churrasco”, conta a esposa, Jessica Pete, com um suspiro. “Se tiver um infarto, ele não será capaz de sentir. Às vezes ele esfrega o braço, e entro em pânico: ‘Você está bem?’” Ela o olha, e ele dá uma risadinha. “Ele acha engraçado”, diz ela. “Não acho graça nenhuma.”
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Pam
PAM COSTA, 52 ANOS. Doença dolorosa rara: Eritromelalgia, que inflama os vasos sanguíneos. Foto: Cait Oppermann.
Pam Costa, de 52 anos, que mora a 150 km dali, em Tacoma, no estado de Washington, está na outra ponta da escala de dor. Ela nasceu com uma rara doença neurológica chamada eritromelalgia, na qual os vasos sanguíneos do corpo inteiro se inflamam e são uma fonte constante de dor. Pam usa roupas largas, porque o tecido parece um maçarico contra a pele. Dorme com travesseiros gelados, porque o mínimo calor faz os membros arderem como se estivessem em chamas.
Ela toma 50 mg de morfina duas vezes por dia. Instrutora de psicologia numa faculdade e mãe de uma filha adolescente, ela sofre com a dependência de morfina. Mas, se ficar sem o remédio, a dor se torna insuportável.
Há um ano, ela foi a Las Vegas para uma conferência profissional, e o avião ficou parado na pista com um problema mecânico. Não havia ar condicionado, e a temperatura começou a subir. Com a pele latejando, Pam convenceu a aeromoça a deixá-la sair. “Eu estava com muito medo de desmaiar, vomitar ou chegar a um ponto em que ficasse imobilizada.”
Pam e Steven nunca se encontraram, e sua lida diária com o mundo não poderia ser mais diferente. Mas, graças em parte a estudos de que os dois participaram, os cientistas descobriram um vínculo genético sem precedentes que une suas doenças invertidas. Hoje, dezenas de pesquisadores farmacêuticos estão mergulhados em estudos clínicos de um novo tipo de medicamento que imita a doença de Steven para tratar Pam e milhões de outros pacientes com dor crônica – sem os efeitos colaterais às vezes graves dos analgésicos existentes, como os opioides e os anti-inflamatórios não esteroides.
A dor crônica
Se você se queimar no fogão, vai doer. Mais especificamente, as células nervosas da mão sentem o calor e enviam sinais ao cérebro, que manda você parar de fazer o que está fazendo e buscar ajuda. Felizmente, a maioria das dores agudas ou temporárias pode ser tratada: os opioides amortecem a pontada de uma incisão; os anti-inflamatórios mascaram o desconforto de uma entorse.
A dor crônica, por sua vez, nunca passa. Pode ser inflamatória (causada por doenças como a artrite) ou neuropática (afetando os nervos, como em alguns casos de herpes, diabetes e tratamentos quimioterápicos). Algumas dores crônicas nunca são ligadas a uma causa coerente.
Esse tipo de dor não diagnosticável cria problemas próprios. Às vezes, quando criança, Pam foi acusada de ter problemas comportamentais. Na escola, ela escapulia até o bebedouro para molhar pernas e braços com água gelada. Chapinhava nas valas profundas perto de casa, porque a água fria e lamacenta dava à dor um alívio momentâneo. Um médico disse que seus sintomas eram psicossomáticos.
Em 1977, quando Pam tinha 11 anos, chegou uma carta da Clínica Mayo. Um primo fora encaminhado ao centro médico por se queixar de dor constante. Os médicos de lá descobriram que 29 parentes de Pam tinham eritromelalgia. Depois de conhecer melhor os sintomas de Pam, um pesquisador da Mayo disse aos pais dela que, aparentemente, a filha herdara o mesmo problema. Pam decidiu não passar adiante a doença. “Mandei ligar as trompas logo depois de fazer 18 anos”, conta ela, com um toque de pesar na voz. “Desde bem pequena, mais do que tudo no mundo, sempre quis ser mãe.” Quando se casou, ela e o marido adotaram uma filha.
Dr. Stephen Waxman
Stephen Waxman estudava medicina no início da década de 1970, e ficou fascinado com a dor – como as pessoas a sentem, como o corpo a transmite e de que modo o futuro neurologista poderia aprender a controlá-la. Portanto, com a carreira já avançada, quando o pai estava nos estágios finais da dolorosíssima neuropatia diabética, ele ficou obcecado por ajudar pacientes que não conseguiam alívio para a dor. “Simplesmente, tínhamos de fazer mais por eles”, afirma.
Hoje, o Dr. Waxman, 72 anos, é diretor do Centro de Pesquisa em Neurociência e Regeneração da Escola de Medicina da Universidade de Yale. Durante boa parte da carreira, ele se interessou pelos canais de sódio, portais que permitem a entrada e saída de partículas carregadas nos neurônios. Especificamente, ele acreditava que um desses canais, o Nav1.7, tinha um papel importante na sensação de dor.
Em sua teoria, um estímulo faz o canal Nav1.7 permitir a passagem de íons de sódio, o que faz as mensagens de dor, ardor ou queimação se registrarem no cérebro. Se o gatilho perdurar, o Nav1.7 se fecha. Em pessoas com certas mutações nos canais Nav1.7, sensações que não seriam registradas pelo cérebro se traduzem em dor extrema.
Em 2004
Em 2004, a equipe do Dr. Waxman procurava pessoas com alguma forma de dor herdada para determinar exatamente como o canal Nav1.7 funciona ao provocar ou amortecer sensações dolorosas. Naquele mesmo ano, cientistas de um laboratório de Pequim publicaram o resultado do estudo de uma família chinesa com eritromelalgia no qual o transtorno foi ligado a mutações de um único gene do canal de sódio, o SCN9A. Sem dúvida, quando soube do artigo, o Dr. Waxman instruiu a equipe a procurar famílias com eritromelalgia. A de Pam Costa foi a primeira.
A equipe do Dr. Waxman recolheu DNA de 17 primos, tias e tios de Pam que sofriam de eritromelalgia e sequenciou seus genes para encontrar as mutações. Depois, a equipe provocou as mutações no DNA que codificava os canais de sódio normais e acompanhou como esses canais reagiam a estímulos.
O resultado provou que a teoria do Dr. Waxman estava correta; além de demonstrar que as mutações do SCN9A aumentavam a probabilidade de os canais do Nav1.7 se abrirem (ou seja, estímulos inofensivos provocariam dor com frequência), também se constatou que, quando se abriam, os canais se mantinham abertos por mais tempo, aumentando o desconforto. “Agora tínhamos um vínculo totalmente convincente entre o Nav1.7 e a dor.”
Se conseguisse regular ou até desligar o canal Nav1.7, a equipe poderia regular ou desligar o modo como sentimos determinados tipos de dor.
Na primeira infância
Por volta dos 6 meses de idade, Steven Pete mastigou parte da língua. Mais velho, batia a cabeça na parede. Portanto, os pais o fizeram usar capacete e enrolavam seus braços e pernas em meias compridas.
Contudo, Chris, o irmão mais novo, tinha vários dos mesmos sintomas. Era raro passar um dia em que nenhum deles sangrasse ou se ferisse. No entanto, finalmente, os meninos foram diagnosticados com insensibilidade congênita à dor. Sobretudo, alguns anos depois, um médico disse se a Chris que as lesões de uma vida tinham causado tantos danos que, provavelmente, ele acabaria numa cadeira de rodas antes dos 30 anos. Pois foi demais para Chris. Ele se enforcou nove anos atrás. Tinha apenas 26. “Foi como perder… minha vida”, diz Steven.
Vancouver, Canadá
Enquanto isso, perto de Vancouver, no Canadá, uma pequena empresa se aproximava de uma descoberta no entendimento da doença dos irmãos. A empresa, que hoje se chama Xenon Pharmaceuticals, estudava transtornos raros de um único gene para criar medicamentos que tratassem doenças comuns com sintomas semelhantes.
Então, em 2001, a empresa ouviu falar de uma família em Terra Nova cujos quatro membros não sentiam dor. A Xenon desconfiou que a doença era genética e começou, primeiramente, a procurar mais participantes.
Acompanhando notícias e usando o boca a boca, os pesquisadores encontraram e estudaram 12 famílias com insensibilidade à dor. (Os Petes não estavam entre elas.) Por fim, a Xenon encontrou uma característica comum: mutações num único gene, o SCN9A, e no canal de sódio Nav1.7 que ele codifica.
“Quando não funciona num ser humano, esse único canal o deixa incapaz de entender e sentir qualquer forma de dor”, diz Robin Sherrington, então diretor-presidente de ciências biológicas da Xenon. Se conseguisse desenvolver um medicamento que simulasse essa doença – “inibir o canal Nav1.7 para reproduzir parcialmente aquela ausência de dor”, explica ele –, a empresa poderia usá-lo para aliviar a dor crônica sem nenhum dos efeitos colaterais dos opioides e de outros analgésicos.
Afinal, é raro que um único gene tenha um efeito tão radical sobre uma única sensação. As equipes de Sherrington e do Dr. Waxman só souberam das descobertas uma da outra por relatórios publicados e artigos em revistas. Certamente, ficaram surpresos ao constatar que pessoas como Pam Costa e Steven Pete tinham algo em comum. “Fiquei estupefato quando vimos os dois lados da moeda genética”, lembra o Dr. Waxman. “O SCN9A realmente é o gene mestre da dor.”
A Xenon acabou encontrando um composto que se acopla ao Nav1.7 sem efeitos colaterais graves. Infelizmente, quando testado em 330 pacientes que sofriam de nevralgia, o resultado foi desapontador. Ou seja, em quatro semanas, o nível de dor não melhorou de forma significativa.
E em Yale…
Em Yale, o Dr. Waxman e seus pesquisadores ajudaram a Pfizer a testar, em cinco pacientes com eritromelalgia, outro bloqueador do Nav1.7. Os cientistas provocaram dor nos participantes com cobertores elétricos. Desse modo, três pacientes relataram redução da dor depois de tomar o medicamento.
No entanto, também há outras abordagens menos convencionais em andamento. Na Amgen, empresa farmacêutica de Thousand Oaks, na Califórnia, cientistas descobriram que a toxina de uma tarântula chilena pode agir sobre o Nav1.7. Desde então, eles criaram uma versão sintética mais potente do que a original.
Sendo assim, ainda há obstáculos para achar um tratamento com compostos que permitam o registro de alguma dor sem eliminá-la por completo. Mas agora muitos veem um caminho adiante.
“Espero”, diz Steven, “que algum dia os pais possam escolher, pelos filhos que não sentem dor, ativar aquele canal de sódio para que os filhos possam ter uma vida normal.”
Os pacientes
Além disso, nenhum progresso seria feito sem a colaboração de pessoas como Pam e Steven, que há anos participam de estudos.
Pam ainda se lembra de conhecer o Dr. Waxman em Yale, em 2011, seis anos depois de a equipe dele entrar em contato pela primeira vez com sua família para estudar seus genes. No computador, ele mostrou a imagem dos aminoácidos bem dobradinhos que formam o canal de sódio de uma pessoa normal. Em seguida, ele mostrou outra imagem: aminoácidos movimentando-se em zigue-zague até saírem da tela. “Esta é você”, disse ele.
Ainda assim, durante a vida toda, Pam só pôde descrever aos outros o que sentia; pois nunca podia lhes mostrar. Ela diz que ver a prova médica da própria dor, acima de tudo, “foi a experiência mais legitimadora de toda a minha vida”.
Por outro lado, o trabalho para atingir o canal Nav1.7 não ajudará Steven nem outros com insensibilidade congênita à dor; pois não faz sentido bloquear um portal que está permanentemente fechado. A doença continua a ter causa conhecida mas nenhuma cura, passada de uma geração a outra.
Assim, em 2008, quando sua filha nasceu, Steven perguntou ao médico na sala de parto: “Ela sente dor?”
No entanto,“Eles a espetaram”, lembra a esposa. “E ela chorou.” Foi praticamente um alívio.
POR ERIKA HAYASAKI DA REVISTA WIRED
DE WIRED (ABRIL DE 2017), © 2017 DE ERIKA HAYASAKI, WIRED.COM.
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