Apesar de recente, para muitos pacientes, o tratamento com células-tronco já faz diferença duradoura na qualidade de vida. Saiba mais!
Redação | 25 de Abril de 2022 às 14:00
Em 2017, Annissa Jobb entrou mancando no consultório do Dr. Riam Shammaa, especialista em dor e medicina esportiva de Toronto. A auxiliar de enfermagem que trabalhava em lares para idosos estava desesperada depois de passar uma década de dor nas costas decorrente de uma hérnia de disco não diagnosticada.
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“Minha vocação na vida é cuidar dos outros”, diz Annissa, hoje com 54 anos. Mas trabalhar com idosos frágeis envolve levantar peso, curvar-se, puxar. Não era possível dar repouso à lesão. Então ela trincava os dentes enquanto a dor piorava.
“Eu tinha uma gaveta cheia de analgésicos. Nenhum deles funcionava. Vivia irritada. Eu e meu marido quase nos divorciamos.” Em novembro de 2016, Annissa mal conseguia andar 200 metros. “Finalmente, o clínico geral disse: ‘Você acabará numa cadeira de rodas se não parar de trabalhar.’”
Annissa foi encaminhada ao Dr. Shammaa, que lhe ministrou infiltrações de bloqueio da coluna, semelhantes a uma anestesia peridural, com algumas semanas de intervalo. O tratamento reduzia a dor durante alguns dias ou semanas, mas ela sempre voltava.
Historicamente, o tratamento da dor crônica e complexa nas costas não é ideal e, às vezes, resulta em pacientes viciados em opioides ou submetidos a grandes cirurgias de fusão espinhal adequadas para apenas um em cada 20 pacientes e, muitas vezes, mal sucedidas.
Consciente dessas limitações, o Dr. Shammaa leu sobre a pesquisa da terapia inovadora com células-tronco na Europa e começou um estudo com 23 pacientes. Annissa se encaixava nos critérios de inclusão, e ele lhe perguntou se queria participar, avisando que não havia nenhuma garantia. O procedimento envolveria o uso de células de sua própria medula óssea e era comprovadamente seguro. Ela concordou.
O procedimento, também investigado na Universidade de Montpellier, na França, e na Clínica Mayo, nos Estados Unidos, entre outros locais, envolve extrair tecido da medula óssea de um paciente e concentrar as células-tronco da medula, conhecidas como células-tronco mesenquimais. Esse concentrado de medula óssea (conhecido como BMAC, sigla do termo em inglês) é injetado no disco herniado do paciente, na esperança de que ele se regenere e a lesão seja então curada.
A ressonância mostrou que dois discos causavam o problema de Annissa. “Das cinco vértebras da coluna lombar, uma ou duas com lesão mostram que a coluna não se deteriorou por inteiro”, diz o Dr. Shammaa. “Por outro lado, quando há cinco vértebras com doença grave dos discos – em outras palavras, se a coluna estiver em péssimo estado –, não há muito que se possa fazer.”
O procedimento durou três horas e meia, começando com a extração da medula óssea de Annissa – o passo mais doloroso –, imediatamente destilada e concentrada. Então, guiado por um tipo de radiografia chamado fluoroscopia, o Dr. Shammaa inseriu uma agulha na coluna de Annissa para injetar o BMAC nos discos. Annissa ficou acordada durante todo o procedimento para avisar o Dr. Shammaa se ele tocasse um nervo.
Ela se recuperou no leito durante duas semanas e, então, aos poucos, começou a andar. Um mês depois, entrou andando no consultório, momento que o Dr. Shammaa recorda com prazer. “Ela não estava acreditando”, diz ele. Antes, Annissa descrevera sua dor como “mais de 10”; agora, diz que a classificação é 2.
Quando publicou seus achados no número de março de 2021 da revista Frontiers in Medicine, o Dr. Shammaa relatou que 90% dos pacientes ganharam 2 a 3 milímetros de altura, perdidos em função da compressão dos discos. Além disso, 80% pararam de usar opioides.
O uso de células-tronco faz parte do campo da medicina regenerativa, surgido duas décadas atrás. Na medicina regenerativa, as células e os fatores de crescimento do próprio organismo são usados para reparar tecidos e restaurar sua função. Vários produtos e terapias celulares já foram aprovados pelos órgãos reguladores de vários países e estão em uso, como substitutos da pele para tratar queimaduras, “andaimes” para curar incisões cirúrgicas e produtos derivados do sangue do cordão umbilical para tratar certas doenças e transtornos sanguíneos.
O uso de células-tronco na medicina regenerativa tem o potencial de revolucionar o tratamento de muitas doenças na próxima década. (As células-tronco são as células básicas encontradas em embriões e em tecidos do organismo adulto; elas se autorrenovam e, singularmente, podem gerar outros tipos de célula.)
Como relatam os pesquisadores em estudos clínicos com células-tronco realizados no mundo inteiro, a esperança de que essas células possam reparar organismos lesionados, muito discutida e debatida nos círculos científicos, parece bem fundamentada.
“Vemos que, algum dia, a medicina regenerativa será uma especialidade médica por si só, como a cardiologia ou a neurologia”, diz o Dr. Shane Shapiro, professor assistente de cirurgia ortopédica da Clínica Mayo, em Jacksonville, na Flórida.
São muitas as histórias de sucesso. Por exemplo, num estudo de tratamento da perda de visão congênita com células-tronco da retina, feito no campus de Irvine da Universidade da Califórnia, uma mulher conseguiu ver a família pela primeira vez em anos.
Uma criança alemã com uma doença de pele às vezes fatal chamada epidermólise bolhosa se recuperou depois de receber um transplante de células da pele geneticamente modificadas na Universidade de Módena e Reggio Emilia na Itália.
A atriz americana Selma Blair divulgou, em agosto passado, que estava em remissão depois de participar de um estudo de transplante de células-tronco para tratar a esclerose múltipla. E um estudo sobre o tratamento da osteoartrite, em andamento na Irlanda, na França e nos Países Baixos, mostra resultados iniciais promissores em 18 pacientes.
Apesar desses primeiros sucessos, o Dr. Shammaa avisa que a ciência é tão nova que é fácil ser mal interpretada e mal aplicada. “Há muitos charlatões por aí”, diz, indicando as clínicas particulares de células-tronco do mundo inteiro que afirmam curar coisas como disfunção erétil e demência, sem provas genuínas e desafiando os órgãos regulatórios. “É importante que os pacientes saibam o que é possível agora e o que ainda está no futuro.”
Ele acrescenta: “Alguns pacientes são bons candidatos para procedimentos simples, como uma injeção de concentrado de medula óssea, mas outros têm doenças ou lesões avançadas ou complicadas demais. Não podemos lhes dar falsas esperanças.”
Então, qual é o estado da arte nesse novo campo tão empolgante?
Uma das primeiras inovações ocorreu em 2006, quando Shinya Yamanaka, biólogo molecular da Universidade de Quioto, no Japão, mostrou que a terapia com células-tronco poderia evitar o uso moralmente contestado de células-tronco de embriões. Ele descobriu que era possível induzir células da pele de adultos a se desenvolverem como células sanguíneas, ósseas ou hepáticas, do mesmo modo que as células-tronco de um embrião humano se desenvolvem para formar as várias partes do corpo.
Yamanaka, que ganhou o Prêmio Nobel de 2012 por esse trabalho, as chamou de “células-tronco pluripotentes induzidas” (células iPS). Essa descoberta fez a conversa sobre células-tronco superar o tema delicado do uso de tecido fetal com objetivos médicos, que é ilegal em alguns países.
O instituto de pesquisa Riken, localizado em Tóquio, fez o primeiro transplante bem-sucedido de iPS em 2014 e criou células da retina geradas a partir de células da pele de um paciente com degeneração macular ligada à idade, uma grave doença dos olhos.
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Pouco depois, o Dr. Henry Klassen, da Universidade da Califórnia em Irvine, supervisionou um estudo do tratamento da retinite pigmentar, grupo de transtornos genéticos raros que causa cegueira gradual, em que as células progenitoras da retina de um doador foram transplantadas para os olhos dos 28 participantes do estudo.
Um deles, Kristin Macdonald, de 64 anos, de Los Angeles, que tinha ficado cega, recuperou o que chama de explosão de luz. “Agora consigo me orientar pela luz e ver formas e contrastes”, diz ela. Desde então, Kristin se tornou defensora dos estudos com células-tronco.
Então, em 2018, o neurocirurgião Richard Fessler, do Centro Médico da Universidade Rush, em Chicago, supervisionou um estudo de um ano com neurônios motores derivados de iPS transplantados em seis pacientes paralisados por lesões na medula espinhal.
Ele relatou que todos recuperaram algum movimento da parte superior do corpo e que um paciente que só conseguia erguer os ombros passou a usar as mãos para comer, escrever e cumprir outras tarefas.
Esse é o tipo de descoberta que o falecido ator Christopher Reeve, conhecido por representar o Super-Homem, defendia em sua cadeira de rodas depois de sofrer paralisia do pescoço para baixo após um acidente equestre.
Na época, governos do mundo inteiro tomavam providências para restringir a pesquisa com células-tronco embrionárias. (Em determinados casos, as células-tronco embrionárias têm uso médico hoje; elas vêm dos blastocistos – aglomerados de células formados a partir do óvulo fecundado – não implantados durante o tratamento de fertilização in vitro.)
Ainda eram os primeiros dias, com muito a investigar em termos de segurança, dosagem e produção padronizada e barata de iPS para doenças diferentes. Mas Yamanaka previu em 2018 que vários tratamentos usando a medicina regenerativa e novos medicamentos serão desenvolvidos e autorizados até 2030.
Enquanto isso, a primeira geração de tratamentos com células-tronco que obtiveram aprovação regulatória na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos envolve, em geral, transplantes simples de células, em que as células do próprio paciente são levadas de uma parte a outra do corpo, como o procedimento que o Dr. Shammaa realizou em Annissa.
Dito isso, os transplantes de células-tronco em doenças do sangue, como a leucemia, realizados há vários anos, são a única exceção em que também se permitem células de doadores compatíveis.
O procedimento mais comum nos estudos clínicos da Europa, do Canadá e dos Estados Unidos é a transferência de BMAC para a coluna ou o joelho. Enquanto Annissa buscava tratamento para a dor nas costas, Rodolfo Corsini, de 58 anos, procurou em 2020 alívio para a dor ocupacional no joelho no hospital de pesquisa Hamanitis, em Milão, na Itália.
O técnico em telecomunicações nunca ouvira falar de BMAC até que a cirurgiã Dra. Elizaveta Kon lhe sugeriu o procedimento por não ver lesão suficiente que justificasse a cirurgia de prótese de joelho. Ele concordou com a infiltração, que foi um sucesso. “Consigo fazer quase tudo que fazia antes”, diz Corsini.
Com colegas europeus, a Dra. Kon está envolvida em vários estudos exploratórios, inclusive uma comparação do tratamento com BMAC e outro tipo de célula-tronco adulta, chamada fração vascular estromal (FVE), extraída do tecido adiposo da pessoa.
Sem dúvida, as primeiras pesquisas com BMAC trazem esperança, embora com limitações. “Descrevemos esses tratamentos como bons para doenças crônicas e degenerativas, em muitos casos com sucesso no controle dos sintomas e na melhoria da qualidade de vida, mas em geral não há cura”, diz o Dr. Shapiro.
“A analogia poderia ser o diabetes ou o colesterol alto. Não curamos essas coisas; tratamos. O que gostaríamos de ver no futuro é um modo de tratar a artrite sem metal nem plástico ou a doença degenerativa do disco sem fusão espinhal. Essa é a maior meta.”
Um consórcio de dez instituições europeias trabalha para alcançar essa meta. Os pesquisadores buscam até um modo de evitar o procedimento doloroso de extração da medula óssea pela qual Annissa Jobb teve de passar. Em vez disso, como explica a pesquisadora Mary Murphy, da Universidade Nacional da Irlanda, em Galway, eles esperam criar em laboratório as células-tronco mesenquimais de forma padronizada e em grande quantidade.
Do grupo financiado pela União Europeia, alguns se concentram em gerar esse suprimento sustentável, enquanto outros testam novas terapias. Por exemplo, o Centro Médico da Universidade de Leiden, nos Países Baixos, e a Universidade de Gothenberg, na Suécia, estão desenvolvendo um tratamento para a osteoartrite. Ainda se passarão vários anos até tudo ser testado, aprovado e disponibilizado.
Como a medicina regenerativa ainda é jovem, os pacientes precisam tomar cuidado com produtos fraudulentos à base de células-tronco vendidos por empresas inescrupulosas. Elas anunciam a cura de tudo, da calvície à doença de Lyme, e às vezes oferecem células-tronco em frascos, como se fossem poções mágicas.
Há a aplicação temerária de produtos não aprovados por profissionais não especializados, o que provocou processos na justiça e sanções regulatórias. Nos Estados Unidos, por exemplo, em 2019, os órgãos regulatórios federais forçaram uma empresa da Califórnia a interromper a venda de seus produtos derivados de sangue do cordão umbilical.
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Além de a venda de sangue do cordão doado não ter sido aprovada, a empresa, que anunciava o produto principalmente como tratamento para problemas nas costas, nos joelhos e em outras articulações, não fez os exames adequados nos doadores para encontrar doenças comunicáveis e não usou os procedimentos corretos de limpeza e desinfecção. Há muitos exemplos que deram ao campo da medicina regenerativa uma reputação de charlatanismo.
Para conhecer suas opções, consulte um médico especializado em sua doença específica. “Se for artrite do joelho, comece com um cirurgião ortopédico ou especialista em medicina esportiva”, aconselha o Dr. Shapiro. “Se for doença degenerativa do disco da coluna lombar, comece com um especialista em coluna.” Depois, peça encaminhamento a alguém no campo que tenha experiência com medicina regenerativa.
Para muitos pacientes, o tratamento com células-tronco já faz diferença duradoura na qualidade de vida. “Eu e meu marido fomos caminhar no verão passado”, diz Annissa. “Caminhei um quilômetro inteiro. Fiquei empolgadíssima. Pensei: quem sabe consigo começar a praticar esqui cross-country! Por que não?” Para quem convive com a dor crônica, isso é muito libertador.
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