Pesquisador da Fiocruz afirma que o Brasil ainda não passou da primeira onda de Covid-19 e alerta para a necessidade de melhorias no saúde.
Após flexibilizar medidas de isolamento e outras estratégias de prevenção contra o novo coronavírus, a Europa voltou apresentar números alarmantes de mortes e pessoas infectadas.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o continente teve uma “maior aceleração” na disseminação do Sars-CoV-2 e se tornou o responsável por metade dos novos casos de Covid-19 e do aumento de 46% nas mortes, em consequência da doença, registradas no mundo na última semana.
Para conter o avanço da segunda onda do novo coronavírus, países como Itália, Lituânia, França, Alemanha e Reino Unido voltaram a impor o lockdown, que não foi bem aceito por parte da população que quer a retomada total do comércio ainda na pandemia.
Vindo para o lado do Oceano Atlântico, os Estados Unidos já esperam pelo mesmo problema, conforme alertou o Dr. Antony Fauci, diretor-geral do Instituto Nacional de Doenças Infecciosas e Alergia do governo, em entrevista ao jornal Washington Post.
Na visão do especialista, o país enfrentará dificuldades no outono e o inverno, devido ao aumento de casos e hospitalizações que irão ocorrer. Se somado a nova mutação do vírus, encontrada em países como Espanha, este fator já deve ser motivo suficiente para preocupar o brasileiro.
Covid-19 no Brasil
O primeiro caso do novo coronavírus no Brasil foi confirmado ainda no mês de fevereiro, em um homem de 61 anos que mora em São Paulo e tinha viajado para a Itália.
Por aqui, os governos estaduais só começaram a adotar medidas de isolamento em março, e com pouquíssimo apoio do Governo Federal, o que contribuiu para o aumento de casos e pico da contaminação em meados de junho. Atualmente, o país tem 161.196 mortes e 5.591.193 casos confirmados (dados divulgados na manhã desta quinta-feira).
Apesar da expertise no tratamento de doenças infecciosas e rastreamento de pacientes, o Brasil não lidou bem com a chegada da Covid-19. Um cronograma apresentado pelo Ministério da Saúde, previa a realização de 1,5 milhão de testes em maio; 4 milhões em junho; 4 milhões em julho; 3,2 milhões em agosto; 3,1 milhões em setembro; 3,1 milhões em outubro; 3,1 milhões em novembro; e 3 milhões em dezembro.
No entanto, até hoje não foi implantada uma estratégia de testagem a nível nacional, sendo esta uma das maneiras mais eficazes de evitar a proliferação do novo coronavírus.
Exames para identificar a presença do novo coronavírus realizados a cada mês:
Março: 35.585
Abril: 182.561
Maio: 336.475
Junho: 473.374
Julho: 832.239
Agosto: 1.067.674
Setembro: 944.739
Outubro: 711.213 (até o dia 24)
Em meio a este cenário de dúvidas, o Brasil voltou a chamar a atenção de entidades de saúde, por conta do relaxamento das medidas de prevenção, ocasionado pelo retorno das aulas, aberturas aeroportos, rodovias, bares e comércio, além da volta às praias e realização de atividades em academias e locais fechados.
Atitudes semelhantes causaram a segunda onda na Europa, como apontado pelo o Dr.Sergio Botti, Médico Infectologista com Doutorado em Saúde Pública pela Fiocruz.
“Tudo nos leva a crer que os principais fatores que levaram a uma segunda onda na Europa foram o afrouxamento do distanciamento social e do uso universal de máscaras. O retorno das atividades escolares e universitárias também parece que auxiliou. Em contribuição, a surdez dos governantes aos clamores da saúde pública e da epidemiologia para reforçarem as estratégias de testes em maior volume e rastreamento de contatos, além de reintroduzir as restrições aos primeiros sinais de crescimento da pandemia – ações efetivas de vigilância epidemiológica”, explicou o especialista.
O infectologista ainda frisou que ações de vigilância devem ser respeitadas e reforçadas para evitar que o Brasil tenha uma alta acentuada na quantidade de novos casos, assim como vem acontecendo na Europa.
“Esse é o grande ensinamento que podemos aproveitar. Não podemos desrespeitar as regras de ouro e devemos reforçar as ações de vigilância, com aumento do número de testes diagnósticos, efetivo rastreamento, testagem e estabelecimento de quarentena de 14 dias para os contatos, mesmo que o seu teste seja negativo. São as únicas medidas capazes de fazer com que a curva de infecções e mortes pelo coronavírus se mantenha em queda no nosso meio”, concluiu Sérgio Botti.
A segunda onda de Covid-19 pôs em alerta o hemisfério Norte, que entrou na estação mais fria do ano. Já no Brasil, o verão pode ajudar na luta contra o coronavírus, se a população tomar os devidos cuidados, como apontado pelo pesquisador do Observatório de Pesquisa da Covid-19 na Fiocruz, Christovam Barcellos. Segundo o especialista, a chegada da época mais quente do ano seria ideal para preparar o sistema de saúde e evitar um futuro colapso.
“Essa segunda onda já é preocupante para o hemisfério norte. No Brasil, talvez tenhamos um tempo, que vai coincidir com o nosso verão, para nos anteciparmos tanto no incentivo às medidas de proteção individual, quanto na reestruturação do serviço de saúde, com mais testes, identificação das populações mais vulneráveis, dos casos que podem ser graves, internação para os casos mais graves e tratamento os casos mais leves. Também podemos preparar uma estratégia para vacinação e impedir ou desestimular as aglomerações durante o verão, que é muito comum na praia, encontros de família, como no Natal, que devem ser práticas evitadas de qualquer maneira, para a gente não ter surto nos próximos meses”.
Como conter uma possível segunda onda de Covid-19 no Brasil?
Conforme aponta o pesquisador Christovam Barcellos, o Brasil apresenta uma lenta queda no número de casos registrados de Covid-19, por isso, não se pode afirmar que o país já superou a primeira onda, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos.
“Os EUA já estão no terceiro movimento de ascensão do número de casos, por problemas na política, organização do próprio serviço de saúde, entre outros. No Brasil, a gente observa uma curva atrasada em relação aos outros países, principalmente da Europa, tendo o pico no inverno, e o início de uma lenta queda. Por isso, não podemos dizer que acabou a primeira onda.”
“Provavelmente, mantendo essa tendência, vamos seguir o processo de diminuição de casos durante o verão, que coincide com o inverno no hemisfério norte. Então, essas curvas vão ficar defasadas a partir de agora. A América do Sul, no geral, parece que vai se comportar da mesma maneira. O verão tende a proteger um pouco a população por diversos fatores, por exemplo, casas ficam mais arejadas, as pessoas se encontram na rua mantendo uma certa distância, enquanto no inverno acontece o contrário, a tendência é as pessoas buscarem lugares fechados, principalmente na Europa e EUA”, explicou Christovam Barcellos.
O sistema de saúde brasileiro e suas precariedades
O rápido avanço do novo coronavírus no Brasil mostrou a falta de preparo do país para lidar com uma grave epidemia. Além dos desvios de verbas voltadas para a área da saúde, que resultaram no fechamento de diversos hospitais de campanhas, os hospitais públicos também enfrentaram uma grande crise, devido ao aumento da quantidade de pacientes e falta de material essencial para atendê-los.
Por isso, o governo precisa desempenhar um papel fundamental para conscientizar o brasileiro e concentrar seus esforços em melhorias para o sistema de saúde, como explicou o Médico Infectologista com Doutorado em Saúde Pública pela Fiocruz, Dr. Sérgio Botti.
“Deve-se reforçar as orientações para seguimento das regras de ouro: distanciamento social, uso universal de máscaras e lavagem das mãos; e estabelecer ações efetivas de vigilância epidemiológica, com testagem ampla, rastreio e quarentena de contatos.”
No pior período de transmissão do novo coronavírus, a situação dos hospitais foi calamitosa, e alguns tiveram até que fazer uso de containers por não terem local adequado para transferir os pacientes que morreram durante a pandemia.
Porém, essa é só a ponta do iceberg. Todo o sistema de saúde precisa ser revisto, sem excluir os postinhos e centros de atendimento à família, que podem realizar um importante trabalho na prevenção da doença, como destacado pelo pesquisador do Observatório de Pesquisa da Covid-19 da Fiocruz, Christovam Barcellos.
“O sistema de saúde precário não envolve só hospitais. Há também o teste como prevenção, que pode ser feito no centro de saúde, os agentes de saúde visitando as famílias. Todo esse sistema tem que ser adequado para enfrentarmos a pandemia daqui por diante. Infelizmente, estamos vendo a desmontagem de diversos hospitais e equipamentos, como respiradores. Essa infraestrutura de controle dos casos mais graves tem que ser repensada, porque talvez precisemos desses equipamentos nos hospitais de campanha no futuro. Temos que trabalhar a testagem, também, no que chamamos de sistema de vigilância à saúde.”
Para tornar o sistema de saúde brasileiro eficaz no combate ao coronavírus, é preciso melhorar a vigilância na saúde, e o SUS tem papel de grande importância neste processo, podendo trabalhar de forma semelhante ao que vem sendo realizado em países europeus, como a Inglaterra.
“Podemos olhar para o que a Europa está fazendo, com um sistema de vigilância muito forte, que não realiza somente testes, mas também faz a identificação de locais de risco. Na Inglaterra, se detecta até alguns bares que podem estar sendo fonte de transmissão, e há a intervenção sobre esses bares. O SUS é poderoso e tem uma tradição de vigilância em saúde que deve ser utilizado e aperfeiçoado durante o verão, para que a gente se prepare para uma possível segunda onda – que pode ser evitada com a vacina – a partir de março e abril, quando acaba o verão”, explicou Christovam Barcellos.
O que se sabe sobre a imunidade em pacientes que já tiveram a Covid-19
Não é difícil ouvir de pessoas que já foram infectadas pelo novo coronavírus, que elas estão imunes. Mas é preciso ter cuidado com essa informação.
Conforme explicou o Dr. Sérgio Botti, apesar de alguns resultados apontarem imunidade de seis meses à Covid-19 em pessoas que já tiveram a doença, ainda é cedo para garantir que a reação pode conter uma nova onda de disseminação do Sars-CoV-2.
“Até agora sabemos que uma pessoa que já teve a Covid tem imunidade por três meses. Segundo pesquisa recente, pode ser por seis meses. Não sabemos muito, ainda, sobre o que acontece depois desse período. Parece que os casos de reinfecção são relacionados a diversos fatores, como ocorre com toda a ecologia da infecção pelo coronavírus. Ainda é prematuro apontarmos a famosa “imunidade de rebanho pós-infecção” como um fator de contenção da pandemia.”, explicou o médico infectologista.
Questionado sobre prováveis mutações do vírus e seus efeitos em pessoas que já tiveram a Covid-19, o pesquisador Christovam Barcellos afirma que somente se o Sars-CoV-2 sofrer uma grande mudança, o hospedeiro poderá ficar desprotegido.
“As mutações que estão aparecendo não têm afetado o grau de imunidade das pessoas. Caso o vírus sofra uma grande mutação, realmente, quem teve a primeira infecção pela Covid-19 pode não estar imune. Mas não é o que vem acontecendo, pois, principalmente, os pacientes mais graves, desenvolveram anticorpos que servem para combater as mutações, o que é um ensinamento para pensarmos nas evoluções das vacinas também, assim como acontece com a vacina da gripe, que serve para combater novas sepas do vírus todo ano.”
Vacina eficaz contra a Covid-19 só deve sair em 2021
Apesar de 10 vacinas estarem em estágio final de testes ao redor do mundo, a previsão mais otimista é que um medicamento eficaz comece a ser aplicado só em 2021. Caso se concretize, a vacina será uma grande aliada do Brasil na luta contra a segunda onda de Covid-19.
Pensando nisso, líderes dos órgãos de saúde, em conjunto com o governo, poderiam aproveitar a leve queda do número de casos para criar uma logística que facilite a distribuição das vacinas, que deve atender, primeiramente, as populações prioritárias, conforme explicado por Christovam Barcellos.
“Estamos no momento perfeito, enquanto o número de casos cai, para pensarmos em uma logística para a distribuição de vacinas. Neste caso, as populações prioritárias seriam os idosos, os portadores de doenças crônicas graves, como tuberculose, diabetes, obesidade, hipertensão, e também as grávidas, que são apontadas como bastante vulneráveis nas pesquisas.”
O pesquisador ainda chamou a atenção para a corrida entre os países pela vacina, e ressaltou que essa competição não é saudável e ainda pode prejudicar as populações mais pobres em uma segunda onda da Covid-19.
“A competição entre os países pela vacina da Covid-19 vai contra tudo o que construímos na saúde pública, inclusive a vacina mundial contra a gripe, que é modificada anualmente a partir da troca de informações, amostras e tecnologias entre os países. Essa relação é muito importante, principalmente, para atender as demandas dos países mais pobres que podem sofrer com a segunda onda”, concluiu.