As bactérias do intestino afetam as alergias, o risco de depressão e até o efeito de medicamentos. Descubra como ter um intestino saudável.
Douglas Ferreira | 4 de Dezembro de 2021 às 11:00
Uma década atrás, Kaitlyn, cuidadora de 28 anos que mora em Ontário, no Canadá, ficou muito doente. Tinha prisão de ventre dolorosa e febre e estava emagrecendo. “Se eu comesse demais, vomitava”, diz ela.
Depois que os exames eliminaram a doença de Crohn e a colite, o médico de família de Kaitlyn fez o diagnóstico de síndrome do intestino irritável (SII), um problema crônico que causa cólicas, dor e má digestão, além de prisão de ventre ou diarreia.
Embora não possa ser curada, a SII pode ser controlada com mudanças do estilo de vida. A nutricionista sugeriu a Kaitlyn que as bactérias que moravam em seu intestino, chamadas coletivamente de microbioma intestinal, podiam estar desequilibradas, piorando seu estado. Ela recomendou que Kaitlyn tomasse probióticos – comprimidos que contêm cepas específicas de bactérias – para ajudá-la a melhorar.
Em poucos dias de probióticos, Kaitlyn se sentiu muito melhor. “A dor e a febre sumiram, e consegui comer sem passar mal”, diz ela. Ainda era preciso evitar alimentos que causavam as crises, mas ela conseguiu recuperar parte do peso perdido.
O estado do microbioma intestinal influencia várias facetas de nossa saúde física e mental.
Imagine um vidro de alimento fermentado – como chucrute (sauerkraut), que é uma conserva de repolho – cheio de bactérias. Aquelas que já vivem no repolho prosperam quando ele é coberto de salmoura em ambiente fechado. Nesse espaço sem oxigênio, as bactérias decompõem o alimento – por exemplo, seus carboidratos – e liberam ácido, que dá o sabor típico do chucrute. Um processo semelhante ocorre no intestino toda vez que comemos: as bactérias decompõem o alimento e o transformam em vitaminas, aminoácidos e substâncias fundamentais – e, também, gases.
Todas essas bactérias começam a nos colonizar assim que nascemos. Obtemos mais cepas com o leite materno, o lar, o ambiente ao ar livre, o contato com outras pessoas, a comida e até o cachorro da família. Aos 3 anos, seu microbioma praticamente já está como será na idade adulta.
Os diversos tipos de bactéria que vivem no intestino digerem a comida, mas também afetam outros aspectos do corpo, como o sistema imunológico, o cérebro e a saúde cardiovascular.
“O intestino é como um ecossistema”, explica Sean Gibbons, pesquisador do microbioma e professor assistente do Instituto de Biologia de Sistemas, em Seattle, no estado americano de Washington. “É quente, úmido, molhado, como uma floresta tropical.” Ele explica que, como qualquer ecossistema próspero, o intestino está saudável quando há diversidade, com centenas de tipos de bactéria.
Entre as mais importantes estão as Firmicutes e Bacteroidetes, que se alimentam da fibra alimentar e decompõem carboidratos complexos. As duas também produzem ácidos graxos de cadeia curta, compostos microscópicos que ajudam a manter a integridade da parede do intestino. (Essa barreira tem de ser porosa para permitir a passagem de nutrientes, mas, se for porosa demais, pode haver inflamação.) Elas também têm propriedades anti-inflamatórias e promovem a saúde cerebral.
É preciso alimentar bem esses dois tipos, porque, se não houver alimento suficiente em seu sistema, elas começarão a recorrer a uma fonte secundária de nutrientes. “Na verdade, elas começarão a comer o muco intestinal”, explica Gibbons. Se isso acontecer, muitas bactérias intestinais serão repentinamente consideradas agentes externos pelo sistema imunológico, provocando uma reação que pode causar a doença inflamatória do intestino e outros problemas intestinais.
A doença de Crohn e a colite ulcerativa – conhecidas em conjunto como doença inflamatória intestinal (DII) – provocam inflamação e rompem o revestimento do intestino, causando dor, diarreia e emagrecimento. Afetam mais de 5 milhões de pessoas no mundo todo. O Dr. Eugene Chang, diretor do Programa de Medicina do Microbioma da Universidade de Chicago, diz que a causa exata é desconhecida. Mas ele acrescenta que os pesquisadores acreditam que as pessoas são geneticamente predispostas a ter um sistema imunológico hiperativo e que seu microbioma muda de forma sutil para preferir as bactérias que prosperam nesse ambiente inflamatório. “Essas bactérias ativam ainda mais o sistema imunológico. É um círculo vicioso que acaba provocando a DII.”
A SII, muito mais comum, afeta até 11% das pessoas no mundo inteiro e tem muitos sintomas em comum com a DII, mas sem a inflamação e as ulcerações. Como a DII, a causa exata da SII não é clara, mas estudos mostraram diferenças no microbioma dos pacientes com SII, e os probióticos ajudam alguns a melhorar.
Os remédios que os médicos receitam para várias doenças nem sempre fazem efeito, e em alguns casos o responsável é o microbioma intestinal. Assim como decompõem as fibras e o amido da alimentação, os micróbios também podem decompor os fármacos e fazê-los agir de forma imprevisível.
Na verdade, um estudo de 2019 de pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Yale examinou 271 medicamentos tomados por via oral e verificou que o microbioma intestinal afetava dois terços deles; as bactérias consumiam 20% de seus ingredientes ativos. Isso significa, por exemplo, que, se você tiver um excesso de Eggerthella lenta, bactéria encontrada em cerca de um terço das pessoas, a digoxina comumente receitada talvez não ajude a aliviar os sintomas da doença cardíaca.
Esse efeito sobre os remédios tem consequências ainda mais graves no tratamento do câncer. Recentemente, os pesquisadores constataram que o microbioma intestinal pode afetar
o desenvolvimento de alguns tipos de câncer e também afeta quem reage à imunoterapia e aos transplantes de medula óssea.
As informações acima deram origem a um novo campo: a farmacomicrobiômica, estudo de como o microbioma intestinal afeta as ações de um medicamento. Daqui a dez ou quinze anos, o médico poderá examinar seu microbioma com uma amostra de fezes e modular a dose – ou, possivelmente, receitar um probiótico – para os comprimidos fazerem mais efeito. Estudos clínicos já investigam se pacientes com câncer têm mais probabilidade de sobreviver se receberem probióticos personalizados, uma alimentação especial ou um transplante fecal – uma pequena quantidade de fezes de outra pessoa que pode revitalizar seu microbioma intestinal.
“Duas décadas atrás, pensávamos que a obesidade e os transtornos metabólicos só tinham relação com a quantidade de comida ingerida”, diz Chang. “Mas acontece que o microbioma intestinal tem um papel importante.”
A conexão fica mais clara em camundongos: quando pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Washington transplantaram amostras de fezes de pessoas magras e obesas em cobaias, os animais que receberam transplantes fecais dos participantes obesos engordaram mais e acumularam mais gordura do que os que receberam de participantes mais saudáveis, mesmo quando todos os camundongos tinham a mesma alimentação pobre em gorduras.
Há alguns indícios em seres humanos também: num estudo de dois anos atrás, pesquisadores belgas deram a pessoas com sobrepeso ou obesas com resistência a insulina uma bactéria mais comum no intestino de homens magros. Como nos camundongos, a nova bactéria reduziu a resistência à insulina dos participantes, que perderam mais peso e gordura do que o grupo que recebeu placebo.
Pensamos nos transtornos do humor como originados no cérebro, mas o intestino também pode ser uma fonte. Um estudo de 2019 verificou que pessoas com depressão têm menos Coprococcus e Dialister do que a maioria. Outra pesquisa descobriu que camundongos que recebem transplantes fecais de seres humanos deprimidos também ficam deprimidos.
A mudança do microbioma intestinal pode melhorar a saúde mental? A pesquisa ainda está no início, mas um estudo australiano de 2017 teve resultados promissores. Foram examinadas pessoas com depressão grave que tomavam medicação ou faziam terapia. Metade manteve os tratamentos e também experimentou a alimentação mediterrânea, rica em cereais integrais, proteína magra, legumes, verduras e frutas. Esse grupo teve uma redução muito maior da depressão do que os outros.
O microbioma diversificado ajuda a regular o sistema imunológico, principalmente no início da vida. Assim, quando seu sistema imunológico é hipersensível por causa do microbioma, a probabilidade de alergia, asma e eczema aumenta.
É por isso que a exposição a várias bactérias desde tenra idade é tão importante. As crianças que nascem por parto vaginal têm menos probabilidade de alergia do que as nascidas por cesariana, assim como as pessoas criadas em fazendas, com animais de estimação ou com irmãos mais velhos.
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De acordo com B. Brett Finlay, professor de microbiologia da Universidade da Colúmbia Britânica (UBC) e autor do livro Deixe-os comer terra, o uso de antibióticos também pode produzir um grande impacto: quando matam as bactérias causadoras da doença, eles também matam as bactérias que mantêm o intestino diversificado e saudável. Isso aumenta o risco de que o microbioma intestinal seja inadequado para prevenir as doenças que provocam alergia, asma e eczema. Na verdade, Finlay e outros pesquisadores da UBC constataram que quem tomou antibiótico antes de completar 1 ano tinha o dobro da probabilidade de apresentar asma aos 5 – e o risco aumentava a cada série do medicamento.
O impacto do intestino menos diversificado persiste na idade adulta. Quando analisaram o microbioma de mais de 1.800 alérgicos, pesquisadores do Projeto Intestinal Americano verificaram que quem sofria de alergia sazonal e alergia a oleaginosas tinha menos diversidade intestinal.
Não há uma receita mágica para todos, embora os pesquisadores esperem que, em cinco anos, os exames do microbioma fiquem tão detalhados que se possa receitar probióticos personalizados ou fazer outras recomendações específicas para cada paciente. Mas há algumas mudanças de hábito que podem ajudar agora.
Uma das conexões mais comprovadas entre o estilo de vida e a saúde intestinal é que comer mais fibras cria um microbioma melhor. A fibra é a principal fonte de alimento das bactérias intestinais mais importantes, e não ingerir o suficiente as faz passar fome, e muitas morrem. Isso significa que podem produzir menos ácidos graxos de cadeia curta e outros componentes importantes da alimentação e passar a consumir o revestimento mucoso do intestino.
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Infelizmente, nos países ocidentais, a maioria das pessoas não ingere fibra suficiente. Por exemplo, segundo o IBGE, o consumo médio entre os brasileiros está bem abaixo da ingestão diária recomendada tanto pelo Ministério da Saúde quanto pela Organização Mundial da Saúde, que é de 25 gramas.
Para obter a quantidade recomendada ou mais, concentre-se em ingerir cinco porções de frutas, legumes e verduras por dia, além de carboidratos integrais em todas as refeições.
A meta geral é criar um microbioma intestinal diversificado. E não são só as fibras que dão sustento às bactérias boas; outras componentes da refeição fazem isso também. Se você comer alimentos bem variados, com muitos tipos e cores de frutas, legumes e verduras, essa variedade promoverá um intestino saudável.
Por outro lado, alimentos industrializados ricos em gordura eliminam cepas de bactérias saudáveis e tornam o intestino menos diversificado, diz Chang. Se, de repente, você parasse de comer salada para comer batata frita, acrescenta ele, “seu microbioma mudaria em 24 horas, com redução dos micróbios saudáveis promovidos pelas fibras vegetais”.
Os antibióticos salvam vidas quando necessários, mas tendem a desequilibrar o microbioma intestinal e a matar até as bactérias saudáveis que ajudam a manter a parede do intestino. Em geral, elas conseguem rechaçar as bactérias que causam doenças, assim como é mais difícil as ervas daninhas invadirem um gramado saudável do que o solo não plantado. Mas, quando os antibióticos fazem seu serviço destrutivo, as bactérias ruins podem assumir o controle antes que as boas consigam se restabelecer. Então a pista de que há algo errado costuma ser a diarreia. Embora a maioria dos microbiomas intestinais saudáveis consiga se recuperar, se o seu já estiver desequilibrado, Gibbons diz que os antibióticos podem provocar problemas como a SII.
Para prevenir a diarreia causada por antibióticos, pergunte ao médico se não seria bom tomar probióticos no mesmo dia em que começar a medicação. Uma revisão de 2017 da Universidade de Copenhague constatou que apenas 8% dos que tomaram probióticos tiveram diarreia com os antibióticos, comparados a 18% dos que tomaram placebo.
O mais importante é garantir que você realmente precise do antibiótico antes de tomá-lo. De acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, pelo menos 30% das receitas de antibiótico são desnecessárias.
Os probióticos também podem proteger da diarreia em viagens a países onde as bactérias da comida e da água são diferentes das de casa. Como mencionado, os probióticos podem aliviar a SII. É melhor experimentar sob a orientação de um profissional de saúde, que pode sugerir tipos específicos.
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Enquanto isso, os cientistas trabalham para entender melhor os probióticos. “Nos próximos cinco a dez anos, acredito que começaremos a ver probióticos de nível médico no mercado”, diz Gibbons.
O exercício regular melhora o microbioma intestinal. Um estudo de 2016 da UBC constatou que os atletas em melhor forma cardiorrespiratória – um marcador que indica a eficácia com que o corpo leva oxigênio aonde é necessário – também apresentavam mais diversidade no intestino. Outro estudo da Espanha verificou que as mulheres que fizeram três horas de exercício por semana, mesmo uma simples caminhada acelerada, melhoraram a composição do microbioma intestinal.