Mais um mistério médico resolvido, apesar de o paciente ter levado quase a vida inteira para descobrir o que provocava sua asfixia.
Raquel Zampil | 20 de Abril de 2020 às 17:45
Paciente: Kurt, 66 anos, aposentado
Sintomas: Episódios imprevisíveis de inchaço das vias aéreas
Médico: Dra. Anette Bygum, dermatologista do Hospital da Universidade Odense, na Dinamarca
Durante toda a vida, Kurt sofreu ameaça constante de asfixia. O primeiro susto ocorreu aos 20 anos, quando sua garganta se fechou de repente. Ele notara um inchaço incomum nos anos anteriores, mas nada tão grave. Os médicos do pronto-socorro desconfiaram de alguma reação alérgica e lhe deram anti-histamínicos, corticosteroides e adrenalina, que não fizeram efeito. Como medida para salvar sua vida, abriram cirurgicamente a traqueia de Kurt com uma traqueostomia. Aos poucos, o inchaço cedeu.
Kurt passou por coisa semelhante um ano depois. Como antes, os medicamentos antialérgicos tiveram pouco efeito, mas dessa vez o inchaço ou edema acabou sumindo sem cirurgia.
Os médicos testaram o nível de inibidor de C1-esterase (C1-INH), proteína que impede o acúmulo de fluido nos tecidos. Uma doença genética chamada angioedema hereditário (AEH) pode provocar deficiência dessa proteína, mas é rara e só afeta uma pessoa em cerca de 50 mil. O C1-INH de Kurt não estava baixo; na verdade, estava elevado, e outra possível resposta foi descartada.
Mais de 40 anos se passaram, e nesse período Kurt sofreu várias emergências. Numa ocasião apavorante, ele chegou ao hospital com dificuldade de falar, e começou a ofegar e ficar azulado diante dos médicos. Fez uma segunda traqueostomia de emergência.
Fez uma terceira, depois uma quarta, além de muitas outras internações hospitalares por conta do edema e episódios mais fracos que esperava passar em casa.
Às vezes, Kurt perdia reuniões de família, e ele e a esposa tinham muito medo de viajar – e se não encontrassem logo um hospital?
Por todo esse período, vários especialistas foram consultados. Um deles sugeriu uma dieta de eliminação para identificar alguma alergia alimentar, mas não deu em nada. O nível de C1-INH foi novamente verificado e ainda era alto. Kurt fez exames alérgicos cutâneos, mas uma reação esperançosa ao levedo de cerveja se mostrou um falso-positivo.
Em 2014, um dos médicos de Kurt lembrou-se da colega Anette Bygum, do Hospital da Universidade de Odense, especializada em inchaços incomuns, e achou que valeria a pena o encaminhamento.
O alarme de Bygum, que fizera uma pesquisa extensa sobre o AEH, soou principalmente quando soube que era comum Kurt ter episódios depois do tratamento dentário. Traumas físicos e emoções fortes podem desencadear crises em pessoas com a doença. “Achei que seu histórico era muito convincente, que ele devia ter AEH”, diz ela.
No entanto, Bygum desconfiou que Kurt tinha um subtipo raro chamado AEH tipo II, no qual o organismo produz a proteína C1-INH, que, porém, não funciona direito. Responsável por apenas 10% a 15% dos casos de AEH, o subtipo não era muito conhecido quando Kurt apresentou os primeiros sintomas. Bygum testou o funcionamento do C1-INH de Kurt e constatou que era ruim. Então, a análise genética confirmou o diagnóstico e identificou a causa, uma mutação.
Não há cura para o AEH. Hoje, Kurt leva consigo um frasco de C1-INH concentrado. Numa emergência, os médicos podem injetar o medicamento ou usá-lo no soro, em vez de fazer uma traqueostomia.
“Ele e a esposa ficaram muito aliviados”, conta Bygum. Os pacientes com AEH têm probabilidade três a nove vezes maior de morrer de asfixia quando não há diagnóstico. E alguns médicos afirmam que as cicatrizes das várias traqueostomias podem complicar novos procedimentos.
Ironicamente, Kurt não teve outra crise nos cinco anos passados desde que a doença foi descoberta. Às vezes, o AEH fica mais leve com a idade, diz Bygum. Mas, como as crises são provocadas pelo estresse, pode haver outra explicação: “Muitas vezes vemos a frequência dos ataques cair quando dizemos ao paciente qual é a doença, o que reduz a ansiedade deles.”
Por Lisa Bendall
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