Há poucos anos a esclerose múltipla era considerada intratável. Hoje novos tratamentos permitem aos pacientes controlar a doença.
Redação | 1 de Agosto de 2020 às 01:01
Estudante de medicina em Nancy, no leste da França, Charlotte Tourmente tinha 20 anos e sonhava em tratar e curar pessoas. Mas, quando voltou de uma viagem humanitária à África em 1996, começou a sentir cansaço e formigamento nas pernas. Não era a primeira vez que sentia sintomas estranhos.
Ela consultou um neurologista e fez uma bateria de exames. O diagnóstico a atingiu “como um tsunami”: tinha esclerose múltipla (EM), doença autoimune em que as células do sistema imunológico atacam a substância que cerca e protege os nervos no cérebro e na medula espinhal. “Durante várias semanas, as letras EM ficaram girando em minha cabeça”, conta Charlotte.
Na época, os médicos tinham acesso a pouquíssimos medicamentos para combater a doença. Charlotte começou a tomar interferon beta, mas, por causa dos efeitos colaterais, passou para o acetato de glatirâmer, que tomava em injeções diárias.
O medicamento ajudou a reduzir as crises da EM; ela sofria recaídas esporádicas, mas a intensidade era tolerável. Porém, as agulhas causaram lesões: Charlotte desenvolveu nódulos nos braços, nas pernas e na barriga. Doze anos depois, ela finalmente interrompeu as injeções, e a doença piorou. Durante meses, ficou com visão dupla e teve dificuldade de usar a mão e manter o equilíbrio. Depois de uma crise muito violenta em dezembro de 2010, ela foi internada, quase incapaz de falar e agir.
Nisso, os médicos dispunham de tratamentos melhores. Os exames mostraram que Charlotte podia usar um novo medicamento, o natalizumabe, tomado em infusão uma vez por mês. Foi uma revolução. “Desde que comecei a tomar o natalizumabe, não tive mais recidivas”, diz ela depois de nove anos de tratamento. “Fora o cansaço logo após a infusão, não tenho efeitos colaterais.”
Graças aos avanços científicos recentes, hoje a esclerose múltipla passou de doença incapacitante para algo que os médicos conseguem controlar. “E já dispõe de várias opções de tratamento”, explica o Dr. Alan Thompson, do Hospital Nacional de Neurologia e Neurocirurgia de Londres, no Reino Unido. Em toda a Europa, os especialistas têm a mesma opinião.
Embora não saibam exatamente o que provoca a EM, os cientistas sabem que ela é uma disfunção do sistema imunológico do organismo, provavelmente causada por uma combinação de genética (embora a doença não seja hereditária) e fatores ambientais. Os novos medicamentos ajudam a mantê-la sob controle e, em alguns casos, retardam sua progressão.
Quando trabalha bem, o sistema imunológico nos defende de vírus, bactérias e outros invasores microscópicos. Mas, na EM, algumas células guerreiras do corpo se confundem e tratam os neurônios – células do cérebro e da medula espinhal – como invasores inimigos. Destroem a bainha protetora de mielina que reveste os axônios, condutores de informação dos neurônios. Isso interrompe a capacidade dos neurônios de enviar mensagens ao restante do corpo, porque músculos, articulações, olhos e processos de pensamento precisam de mensagens claras para funcionar direito. “As células imunológicas entram em ação e causam o caos”, diz o Dr. Thompson.
A EM atinge 700 mil europeus e tende a atacar entre os 20 e os 40 anos. No Brasil, são cerca de 35 mil portadores, segundo a Associação Brasileira de Esclerose Múltipla (ABEM). As mulheres são mais suscetíveis do que os homens, com uma proporção de três para dois. “A esclerose múltipla afeta cada pessoa de um jeito diferente”, adverte o Dr. Christian Kamm, professor assistente do Hospital Cantonal de Lucerna, na Suíça. De acordo com a área afetada do sistema nervoso, os sintomas iniciais podem ser cegueira súbita em um dos olhos, perda de controle da bexiga, dificuldade de raciocínio ou de memória. Mas, ao contrário da doença de Alzheimer, raramente a EM afeta a inteligência geral, a compreensão da leitura e a memória de longo prazo, embora possa haver problemas de memória ocasionais.
Para diagnosticar a EM, os médicos pedem ressonâncias e punção do líquido raquidiano a fim de procurar lesões cerebrais e outros sinais reveladores do mau funcionamento das células imunológicas. Os mesmos exames são usados para acompanhar o progresso da doença, todo ano ou de dois em dois anos.
A forma inicial mais comum da esclerose múltipla é a remitente recorrente (EMRR), que atinge cerca de 85% dos pacientes. Os sintomas costumam aparecer sem aviso e depois somem sozinhos, completamente ou quase, em dias ou semanas. Mas deixam lesões. A maioria dos pacientes com EMRR avançará para a esclerose múltipla secundária progressiva (EMSP), embora possa levar 25 anos ou mais: sem recidivas, apenas um declínio lento e constante.
Outro tipo, a esclerose múltipla progressiva primária (EMPP), afeta cerca de 15% dos pacientes. Em vez de recidivas e remissões, os sintomas pioram aos poucos. Enquanto a EMRR afeta tipicamente o cérebro, a EMPP geralmente afeta a medula, e esses pacientes tendem a perder o controle das pernas. Os médicos não conseguem prever como a EM do paciente vai evoluir. Em alguns casos, a doença também é difícil de diagnosticar.
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Em 2011, Bethan Edwards, de 39 anos, estava de férias com a família e a filha bebê em Lanzarote, nas Ilhas Canárias, quando acordou sentindo os pés pinicarem, sensação que depois se espalhou para as pernas. O médico local achou que era queimadura de sol, mas logo o formigamento se transformou em dor aguda; depois, as pernas de Bethan ficaram tão dormentes que ela não conseguia descer escadas. Assistente social que já orientara pacientes com EM, Bethan achou os sintomas muito familiares. “Eu ficava dizendo que só podia ser esclerose múltipla”, recorda ela, mas nem o clínico geral de Cardiff, no País de Gales, se convenceu. Só depois que ela passou por uma semana inteira de exames no Royal Gwent Hospital, em Newport, seu autodiagnóstico se mostrou correto. Ela estava com EMRR.
Os médicos a trataram com esteroides, mas consideraram o caso leve e não receitaram outros medicamentos. “Na época, nem todo mundo ia logo para a medicação”, recorda Bethan. Só dali a quatro anos, depois de mais cinco recidivas, eles lhe receitaram fumarato de dimetila.
O remédio causava ondas de calor em Bethan; o rosto corava, ficando vermelho como um tomate. Mas manteve as recaídas sob controle durante quatro anos, até o dia em que, de repente, ela não conseguiu mais andar. “Eu e os neurologistas discutimos a mudança de medicação e eles me ofereceram uma escolha”, conta ela.
Depois de pesquisar as três opções sugeridas pela equipe médica – cladribina, ocrelizumabe e fingolimode, outro medicamento de modulação imune que mantém as células imunológicas presas nos nódulos linfáticos do organismo –, Bethan decidiu-se pela cladribina, um regime de duas semanas de comprimidos repetido uma vez por ano. É cedo para saber o resultado, mas ela não precisa mais se preocupar com as ondas de calor. “Escolhi esse porque os efeitos colaterais são mínimos”, diz Bethan.
Às vezes, as versões mais leves da EM são desdenhadas como simples incômodo. “Com muita frequência, os clínicos gerais não percebem que o formigamento pode ser o primeiro episódio da doença”, esclarece o Dr. Thompson. Em consequência, os pacientes perdem um tempo valioso. “Temos medicamentos eficazes, e, quanto mais cedo começar o uso, melhor o resultado a longo prazo.”
Os remédios mais novos interferem com o mau funcionamento do sistema imunológico suprimindo as células hiperativas ou reduzindo seu número na corrente sanguínea.
Por exemplo, o natalizumabe atua como um porteiro que impede as células imunológicas de entrarem no cérebro. “É um medicamento muito inteligente”, diz o Dr. Thompson, mas com uma restrição. Sem as células imunológicas, o cérebro fica vulnerável a uma infecção rara e perigosa do chamado vírus JC. Por sorte, não é um vírus que se possa contrair; ou as pessoas têm ou não, e isso pode ser revelado por um exame de sangue. “Mais de 50% dos pacientes têm o vírus JC”, explica o Dr. Kamm, e só “quem tem resultado negativo pode tomar natalizumabe”. O exame de Charlotte deu negativo e ela pôde tomar o medicamento.
Quando pensam em novos remédios, os médicos levam três elementos em conta: segurança, eficácia e facilidade de uso. Alguns medicamentos são fortes, mas têm efeitos colaterais; outros são menos potentes, porém mais fáceis de tolerar. E há mais fármacos a serem lançados. Portanto, para os pacientes, vale a pena conversar sobre suas preocupações e efeitos colaterais com o profissional de saúde e perguntar por novas opções. O Dr. Thompson diz que “realmente envolvo os pacientes na decisão”.
Experimentar um medicamento novo deu certo para Ionica Draghici, de Sibiu, na Romênia. Diagnosticado com EM aos 21 anos, Ionica se autoaplicava injeções de interferon beta dia sim, dia não, desde 2006. No começo o medicamento ajudou, e durante 14 anos ele perseverou, com efeitos colaterais como dor e náusea, mas finalmente a eficácia sumiu.
Em 2019, ele ouviu falar do ocrelizumabe, novo medicamento ministrado em infusão de seis em seis meses. “O médico recomendou”, diz Ionica. Embora só tenha tomado uma infusão, ele experimenta menos cansaço e não sente mais dor no local da injeção.
A fisioterapia e a terapia ocupacional ajudam a reparar alguns danos, revela Daphne Kos, professora de terapia ocupacional da Universidade de Leuven e do Centro Nacional de Esclerose Múltipla Melsbroek, na Bélgica. “Usamos uma verdadeira abordagem multidisciplinar, que envolve hábitos de vida, atividade física e também a administração da vida cotidiana no trabalho”, diz ela. Os pacientes com dificuldade de engolir treinam para engolir melhor, os que têm problemas de memória de curto prazo fazem exercícios cerebrais e aprendem maneiras de registrar as coisas.
No entanto, esses serviços variam muito entre os países e regiões. O mesmo acontece com as diretrizes exatas do tratamento, porque não há um protocolo universal. Talvez nem todos os novos remédios estejam disponíveis em todos os países. Alguns orientam os pacientes recém-diagnosticados a experimentar medicamentos mais antigos e baratos, e só é permitida a troca por opções mais novas se eles se mostrarem ineficazes ou intoleráveis. Em outros casos, os pacientes só se qualificam para os remédios mais recentes caso se queixem do regime atual.
Exercícios, ioga, dança, Pilates e acupuntura ajudam, assim como manter a atividade e a forma física e evitar o hábito de fumar. “É importantíssimo que as pessoas com esclerose múltipla se cuidem bem”, adverte o Dr. Thompson; isso ajuda a reparar o corpo. Recentemente, Bethan Edwards começou a praticar ioga; hoje, essa mãe de dois filhos que gosta do trabalho tenta vencer a fadiga e manter o otimismo. “Quero me manter bem pelos meus filhos”, diz.
Bethan também toma vitamina D. Produzida no organismo em resposta à luz do sol, a vitamina D é essencial para a saúde. A pesquisa constata que, nas regiões ensolaradas perto da linha do equador, a esclerose múltipla é quase inexistente. “De algum modo, a vitamina D está ligada à esclerose múltipla”, diz o Dr. Thompson. “Todo paciente com esclerose múltipla deveria verificar o nível de vitamina D e, se estiver baixo, suplementá-la.” O Dr. Kamm recomenda 2.000 mg diários aos pacientes.
Agora que a EM é considerada uma doença “administrável”, os médicos querem elevar a meta do tratamento. “Hoje, nossa meta é de zero recidiva por ano”, diz o Dr. Kamm, “e nenhuma nova lesão cerebral na ressonância.” Isso é ainda mais verdadeiro na EMRR, mas até o avanço da EMPP, mais grave e resistente ao tratamento, desacelera quando o paciente é tratado com ocrelizumabe, dizem os especialistas.
Esses avanços permitem que os pacientes controlem melhor os sintomas, se mantenham empregados e aproveitem a vida e a família. Charlotte Tourmente é testemunha. Durante anos, não foi capaz de exercer a medicina por causa da exaustão e da fadiga. Isso mudou depois que começou a tomar a nova medicação. No outono de 2019, ela abriu um consultório. “Recebo pacientes outra vez, é maravilhoso”, comemora ela.
A mensagem de Charlotte aos que combatem a doença é cheia de otimismo. “Quando comecei com esclerose múltipla, havia três remédios; hoje, temos doze ou treze. Hoje, é possível ter esperança de evitar as recidivas e os efeitos colaterais da esclerose e levar uma vida quase normal.”
Como as células imunológicas são o principal responsável pela doença, todos os medicamentos usados para tratar a esclerose múltipla (aqui citados pelo princípio ativo) funcionam limitando o dano que causam.