No dia 21 de junho de 2012, uma quinta-feira, eu estava felicíssima. Era o último dia de minha semana de trabalho numa entidade de resgate marítimo em
Redação | 1 de Maio de 2020 às 01:01
No dia 21 de junho de 2012, uma quinta-feira, eu estava felicíssima. Era o último dia de minha semana de trabalho numa entidade de resgate marítimo em Sydney, na Austrália, e minha colega Delfina e eu fomos convidadas por um dos diretores para almoçar. A vida era boa. Eu acabara de comemorar meu 50º aniversário e agradecia ao Universo pela vida maravilhosa e por minha linda família: marido, filhas, irmãs, irmão e pai.
De repente, depois do almoço, não me senti bem. Sentei-me à minha mesa e só me lembro de estar caída no chão, com alguém gritando meu nome. Quando abri os olhos, vi dois paramédicos me ligando a um aparelho. A náusea era intensa. Não consigo me lembrar de ter passado tão mal antes.
Fui levada para o St. Vincent’s Hospital, onde fizeram uma ressonância e me disseram que eu tinha um tumor no cérebro. Na melhor das hipóteses, seria benigno e eu precisaria de cirurgia. Na pior, seria maligno, ou seja, eu estaria com câncer. Eles precisariam fazer uma tomografia para verificar o restante do corpo.
No dia seguinte, à tarde, um médico entrou no quarto do hospital com o resultado. “Você tem tumores no cérebro, no fígado, no pulmão, no pâncreas e nos nódulos linfáticos. Em resumo, você tem câncer em estágio avançado. O prognóstico não é bom.”
Fiquei atordoada, chocada, descrente. Disseram que eu precisaria fazer mais exames a fim de descobrir o tipo de câncer, mas que, por enquanto, poderia ir para casa.
“Isso não pode ser verdade”, murmurei para meu marido, Scott. Mas era. E tínhamos de ir para casa e contar a nossas duas lindas filhas: Morgan, de 19 anos, e Remy, de 16.
Estávamos enfrentando um futuro incerto e apavorante. Em vez de passeios ao exterior, viajaríamos para consultas médicas, exames de imagem, tratamento do câncer e exames de sangue. Haveria mal-estar e queda de cabelo. Eu sabia o que me esperava, porque tanto minha mãe quanto minha irmã tinham passado por isso. Minha irmã sobreviveu duas vezes ao câncer de mama, mas minha mãe, Beryl, morreu quando eu tinha 39 anos.
Na quinta-feira seguinte eu tinha hora no oncologista: a terceira consulta médica desde aquela convulsão sete dias antes. “Você tem melanoma”, revelou ele. Fui encaminhada a uma especialista em câncer de pele que me disse que eu estava com melanoma metastático avançado, estágio quatro, sem cura. “Sinto muitíssimo”, lamentou ela.
Era preciso remover o tumor no cérebro com urgência, e ela marcou hora com o neurocirurgião para o dia seguinte.
O Dr. Brian Miller pôs as minhas radiografias na mesa de luz. “Acho que consigo tirar isso sem muito dano. Mas sempre há risco de complicações”, disse ele. “Vá para casa, faça as malas e esteja no hospital daqui a duas horas. Vou operar pela manhã.
Depois da cirurgia, marquei a radioterapia do local de onde o tumor fora removido.
Em pouco mais de 15 dias eu fizera 50 anos, tivera uma convulsão, soubera que tinha câncer avançado em estágio 4 e sem cura e removera um tumor no cérebro. Agora, estava no tratamento intensivo, com 16 grampos na cabeça. O rosto estava sujo de sangue, com manchas roxas, uma atadura enrolada na cabeça. Havia sangue seco por toda parte. Eu parecia um jogador de rúgbi da linha de frente.
O único tratamento disponível para meu câncer era um quimioterápico chamado Dacarbazina, que tem chance de resposta de 10%. Não curava e causava muitos efeitos colaterais. Eu não queria a químio, mas tinha de fazer alguma coisa para desacelerar aquilo até elaborar um plano de sobrevivência.
Agora já se passara quase um mês desde a convulsão, mas, para mim, pareciam dez anos.
Na consulta seguinte, o oncologista me contou que ouvira falar de uma quimioterapia combinada nos Estados Unidos, que usa Abraxane (um medicamento para câncer de mama) e Pazopanibe (medicamento para câncer de rim). Fora testada num pequeno estudo clínico na Alemanha. Cerca de 35% dos 40 pacientes com melanoma reagiram. Alguns tiveram um considerável encolhimento do tumor. Não era fácil conseguir esses medicamentos na Austrália, mas o oncologista poderia encomendá-los e eu começaria o tratamento – com perda do cabelo e os costumeiros efeitos colaterais da químio.
Voltamos para casa com um fio de esperança no coração… até recebermos um telefonema da especialista em melanoma. Ela disse que era bom que eu fizesse a terapia combinada aconselhada pelo oncologista, mas que isso “não mudaria a minha expectativa de vida”.
Foi como se ela enfiasse a mão pelo telefone e me arrancasse as entranhas!
Além da radioterapia no cérebro, também marcamos hora com uma médica para falar sobre radiação em meus órgãos internos. Prometi a mim mesma que examinaria todas as opções, mas então ouvi dela: “Não adianta muito usar radiação nesse estágio… não sei quanto tempo você tem de vida.”
Que diabos! Por que ela disse isso? Com aquelas palavras, a determinação e a vontade de viver se manifestaram profundamente dentro de mim.
Minha primeira infusão de quimioterapia foi em agosto, sete semanas depois do diagnóstico.
Naquela noite, senti um nódulo nas costas. Pode soar trivial, mas para mim foi importante. Foi a primeira vez em que aquela “coisa” virou uma realidade total. Agora, essa coisa que se movia dentro do meu corpo era visível. Fiquei inconsolável.
Eu faria quimioterapia toda semana por… bom, quem sabe? Começaria a perder o cabelo aí pela terceira semana de tratamento e faria uma tomografia por emissão de pósitrons (PET scan) dali a seis semanas a fim de descobrir se reagia ao tratamento.
Felizmente, o resultado foi bom. Os tumores estavam encolhendo, alguns até desapareceram. Eu reagira! Estava entre os 35% dos pacientes dos quais tanto queria fazer parte.
Meu oncologista ficou feliz com o resultado, e eu aguentei bem a químio. Não senti náuseas e consegui manter a ioga, as caminhadas, as corridas e o canto. Mas, depois de oito semanas, comecei a sentir dormência nos dedos das mãos e dos pés. Isso queria dizer que os nervos estavam sendo prejudicados pela medicação.
Quando o formigamento ficou mais angustiante, decidi me autodiagnosticar e mudar as infusões da químio de semanais para quinzenais. Eu sabia que a dormência se devia às substâncias químicas que entravam em minha corrente sanguínea; se os nervos estavam sendo afetados, o que mais sofria danos?
No fim de outubro, fiz uma pergunta premente ao oncologista.
– Por quanto tempo esse tratamento dará certo para mim?
– Vejamos da seguinte forma: não estará mais funcionando em março – respondeu ele.
Eu me senti mal. Todos aqueles sentimentos mórbidos voltaram a borbulhar. Sabíamos que o tratamento não era uma solução de longo prazo. Tinham me dito que minha doença era uma pena de morte. A químio era só um tapa-buraco, não uma cura.
Scott perguntou ao oncologista se, em algum lugar do mundo, havia estudos de medicamentos para melanoma. Ele nos respondeu que havia alguns estudos clínicos no exterior e que a taxa de reação era de cerca de 28%, mas que não costumavam aceitar pacientes estrangeiros. Se fôssemos por esse caminho, teria de ser por conta própria.
Quando cheguei em casa, fui direto para o computador. Procurei no Google até não aguentar mais. Aquele era um campo minado. Havia muitos estudos clínicos, tantos fármacos e tratamentos experimentais. Mas uma terapia se destacou. Chamava-se imunoterapia e usava um medicamento experimental, o PD-1 (programmed cell death 1 ou morte celular programada 1).
Um estudo do PD-1 que trabalhava especificamente com pacientes com melanoma avançado estava sendo realizado em Portland, no estado do Oregon, no litoral oeste dos Estados Unidos. No dia seguinte, ligamos para Daniel Jackson, enfermeiro que coordenava o estudo clínico. Foi desapontador: caí na secretária eletrônica.
Quarenta e oito horas depois, liguei de novo e deixei outro recado. Finalmente, numa manhã de novembro, o telefone tocou. Era Daniel Jackson. Ele foi positivo sobre o estudo, mas confirmou que apenas um terço dos pacientes reagia. O estudo estava ainda no primeiro de três estágios e, portanto, era cedo para prever resultados a longo prazo.
– Como se entra nesse estudo, Daniel? – perguntei.
– Bom, é uma situação incomum. Nunca tivemos um candidato da Austrália. Depois entro em contato.
Alguns dias mais tarde, recebemos um e-mail de Daniel.
Olá, Julie.
Conversei com a equipe, e eles acham que haveria muita burocracia e complicação para você participar do estudo clínico aqui em Portland.
Temos coberturas de saúde completamente diferentes, e, se tivesse qualquer complicação com o tratamento, você não estaria coberta por nosso sistema. Sinto muito não podermos ajudar.
Fiquei muito contrariada. Mas minha determinação aumentou. Eu entraria naquele estudo clínico de qualquer maneira. Disparei um e-mail.
Caro Daniel,
Obrigada pela resposta, mas sinto muito não poder aceitar a decisão de sua equipe com base nas razões que você deu.
Fora o melanoma, estou saudável e em boa forma física. Caminho diariamente, às vezes corro. Quanto ao lado financeiro, se você calcular uma quantia que cubra qualquer complicação prevista, eu gostaria de transferir o dinheiro…
Eu disse a Scott que precisávamos continuar mandando e-mails para mostrar nosso empenho. Eu sabia que estava sendo chata e insistente, mas não me importei.
Mais e-mails foram trocados sem o resultado desejado. Então, tive uma ideia. Eu os lembraria do Juramento de Hipócrates, feito pelos profissionais de saúde. Ele afirma (em resumo) que, se houver um tratamento capaz de ajudar alguém a se manter vivo, qualquer médico com acesso a ele é obrigado a usá-lo.
Alguns dias depois do Natal, recebemos o e-mail que esperávamos. Walter Urba, médico que encabeçava o estudo, concordara em examinar os dados do meu caso para ver se eu me adequava a participar dele. Estavam pensando em mim a sério!
Enviamos minha ficha médica e os exames e, algumas semanas depois, o telefone tocou. Era o Providence Cancer Center, em Portland, perguntando em que data eu queria a consulta com o Dr. Urba. Eles me aceitariam! Eles me dariam uma chance de viver! Íamos para o Oregon!
Scott e eu chegamos a Portland em 1º de março de 2013, prontos para a consulta no dia 4. Eu me inscrevi para os dois anos do estudo, se chegasse lá.
Esse era o trato. Dois anos longe da família e dos amigos.
No Providence Cancer Center, conhecemos Daniel Jackson, o homem que me ajudara incansavelmente a superar todas as objeções e conseguir autorização para que fôssemos.
Daniel parecia ter uns 30 e poucos anos. Falou do estudo e me contou que eu precisaria de uma tomografia, uma ressonância e uma biópsia do fígado. A ideia me deixou mal; se eu tivesse qualquer lesão no cérebro, voltaria para casa.
Em seguida, conhecemos o Dr. Urba, o homem providencial para montar esse estudo de imunoterapia. Tinha uns 60 anos e era muito simpático. Ele nos deu parabéns pela tenacidade e pela determinação de ir aos Estados Unidos, e Scott e eu gostamos dele imediatamente.
Três dias depois, Daniel ligou com o resultado dos exames. “Seu cérebro está limpo. Achamos que você tem muito com que trabalhar. Fizemos a biópsia de um dos tumores do fígado e obtivemos as informações de que precisávamos. Começaremos com a medicação na segunda-feira.”
Fui para o quarto e chorei lágrimas de felicidade.
Na segunda-feira seguinte, estávamos no centro de tratamento de câncer às oito da manhã. Fui a primeira a chegar e a última a sair. Foi uma maratona e tanto: nove horas contínuas na cadeira. No fim, eu me sentia um rato de laboratório. Mas era uma pesquisa. Eu não passava de um número. Seria conhecida como Paciente 71. O estudo deveria ser feito com 70 pacientes, mas, por tanto pedirmos e implorarmos, eles abriram espaço para mais um. Pela primeira vez na vida, fiquei contente em ser “só um número”.
Na primeira semana, fui ao hospital todos os dias para colherem e examinarem meu sangue. Depois disso, recebi uma infusão de PD-1 de 15 em 15 dias e fiz um checkup por semana. Era esquisito estar tão longe de casa se só precisava ficar no hospital umas cinco horas por quinzena.
No fim de março, Scott teve de voltar à Austrália para ficar com as meninas.
Senti uma dor na boca do estômago. Era um duplo golpe: o grande buraco que sentia pela doença ameaçadora e a solidão física de estar separada de todos os familiares e amigos.
Algumas semanas depois, o Dr. Urba perguntou se eu não gostaria de participar de um projeto para levantar recursos para o Providence Cancer Center. Aceitei com entusiasmo. A sensação de ser útil é muito animadora: eu passara tempo demais concentrada em mim. O trabalho voluntário envolvia fazer vídeos para o site do Providence na internet. Também quiseram Scott nos vídeos, e ele ficou empolgado quando lhe contei pelo telefone; ambos éramos apaixonados por retribuir.
Scott voltou a Portland 14 dias depois para minha próxima rodada de exames. O resultado determinaria se eu ia viver ou morrer.
“O resultado é bom, mas não excelente… ainda. Você teve uma pequena redução da maioria dos tumores, e só precisamos continuar o tratamento”, disse o Dr. Urba.
Então deixei escapar: “Quero voltar para casa, Dr. Urba. Como eu poderia obter o medicamento lá na Austrália? Estou com saudade das minhas filhas, da família, dos amigos.” Achei que ele responderia com “Está brincando?”, mas não.
Ele disse, calmamente: “Por enquanto, você precisa ficar. Mas farei todo o possível para dar um jeito de mandar você para casa.”
Cedo demais, chegou a hora de Scott voltar à Austrália. Fui tomada por aquelas sensação de desespero. Então, tive uma ideia. Vou com ele! Vou depois do tratamento desta semana, vejo minhas filhas e volto para a próxima infusão daqui a 15 dias.
– A gente se esforçou tanto para trazer você para cá. Não vá desistir agora – respondeu Scott quando lhe contei.
– Sei disso, mas e se eu não chegar aos seis meses? – perguntei. – E estou passando todo esse tempo longe de minha família.
Scott não teve resposta.
Liguei para o Dr. Urba e perguntei se podia passar 15 dias em casa. “A empresa farmacêutica não vai gostar, mas você está em boa forma e é saudável, além do óbvio…”, respondeu ele.
Desliguei e comecei a dançar pelo quarto. Eu passaria o Dia das Mães em casa.
Aquela primeira semana em casa mais pareceu um dia. Fiz tudo o que pude e me encontrei com todos. Depois de duas semanas na Austrália, voltei a Portland, pronta para mais PD-1, mas me disseram que eu não poderia receber o medicamento porque a tireoide estava desequilibrada.
Fiquei arrasada. Eu deixara meu marido e minhas filhas para chegar a tempo de receber a medicação, mas não conseguiria tomá-la. Eu poderia ter ficado em casa!
Mais tarde, o Dr. Urba me ligou para dizer que o medicamento estimulara meu sistema imunológico, que “infelizmente às vezes ataca a tireoide, mas em geral isso significa que o tratamento está dando certo. Portanto, acho que é um sinal positivo”. Duas semanas depois, o nível de hormônio da tireoide melhorou e recebi a infusão.
Na semana seguinte, minhas irmãs Michelle e Nicole vieram passar meu aniversário comigo. Era 8 de junho de 2013. Naquela noite, fomos comemorar na cidade. Eu chegara aos 51 anos!
Duas semanas depois, Scott veio para a rodada seguinte de exames e a filmagem do vídeo para angariar recursos para o centro oncológico. Contar minha história foi mais difícil do que eu previra. Reviver os sentimentos do meu prognóstico foi traumático e exacerbou minha sensação de isolamento das minhas filhas. Decidi naquele momento que escapuliria para casa de novo com Scott depois do tratamento seguinte.
Junto com a saudade, essa jornada tinha nos custado muito financeiramente. Estava claro que não podíamos mais ficar voando de lá para cá entre Sydney e Portland. Mas não antes que eu comparecesse à formatura de Remy e ao 21º aniversário de Morgan.
Eu estava em Sydney havia duas semanas quando Scott anunciou que marcara meu voo para Portland.
– Você tem de viajar na quarta-feira – disse ele.
– Não vou voltar. Eu não consigo. Quero ficar em casa.
Eu sabia que me comportava de forma irracional, como uma criança mimada. Era claro que eu teria de voltar. Então, algo me obrigou a ligar o computador. Vi um e-mail do Mater Hospital, em Sydney.
Cara Julie,
Sua próxima infusão de Nivolumabe (PD-1) será ministrada no Centro Patricia Ritchie, no Mater Hospital, em Sydney. Por favor, telefone para marcar hora.
Eu ficaria em casa com minha preciosa família definitivamente!
Atualização: “Ainda recebo infusões no Mater Hospital como um tipo de apólice de seguro, embora dois médicos tenham dito que estou livre do câncer”, conta Julie. “Os medicamentos imunoterápicos estão trazendo esperança para os pacientes com câncer, e me orgulho de ter participado da ciência por trás deles.”