Tratamentos experimentais trazem uma nova esperança para pacientes com câncer. O segredo da cura do câncer pode estar enscondido no nosso próprio corpo.
Em 2008, logo após entrar no jardim de infância, Tori Lee recebeu o diagnóstico de leucemia linfoblástica aguda (LLA), uma forma agressiva de câncer nas células do sangue. A quimioterapia promove a cura da maioria das crianças que têm a doença, mas Tori não teve tanta sorte. Tori “recebeu quimioterapia por cerca de dois anos, mas depois teve uma recidiva”, conta a mãe, Dana Lee. “Iniciamos um protocolo novo, com quimioterapia mais intensa e radioterapia. Ela passou centenas de dias no hospital.” Ainda assim, o câncer resistia.
Com Tori cada vez mais fraca, seus pais decidiram levá-la ao Hospital da Criança de Filadélfia para que passasse por várias semanas de quimioterapia como preparação para um transplante de medula óssea; um procedimento complexo e arriscado. Os médicos disseram à família que também iriam coletar células T da menina como um plano B: se Tori ficasse tão doente a ponto de impedir o transplante, ela poderia participar de um tratamento experimental promissor chamado T CAR. Este tratamento reprograma geneticamente as células imunes do próprio paciente para matar o câncer. O tratamento fora usado nos meses anteriores para curar outra garotinha, Emily Whitehead, que tinha a mesma forma de leucemia.
Ainda assim, não era fácil decidir pela terapia T CAR. Pois, muitas crianças que participaram do estudo depois de Emily morreram. Tori seria apenas a décima pessoa a se submeter ao tratamento. “Finalmente dissemos: ‘Tudo bem, queremos testar a T CAR.’ Solicitamos a inclusão de Tori no estudo. Achamos que isso daria a ela uma chance de sobrevivência melhor do que o transplante de medula”, diz Dana.
O caso de sucesso de Tori Lee
Em abril de 2013, os médicos injetaram em Tori suas próprias células T modificadas. Seis semanas depois, o câncer da menina entrava em remissão. Cinco anos depois, Tori permanece sem câncer.
Tori Lee aos 15 anos, 5 anos livre do câncer. Depois de cinco anos lutando contra o câncer, uma única dose da terapia experimental T CAR fez com que Tori entrasse em remissão.
Em agosto de 2017, com mais 50 pacientes do estudo em remissão, a Food and Drug Administration (FDA), órgão dos Estados Unidos que controla a liberação de medicamentos e alimentos, aprovou o tratamento. O processo de células T CAR geneticamente modificadas, patenteado sob o nome comercial Kymriah, agora está disponível para crianças e jovens de até 25 anos com LLA que não tenham respondido ao tratamento padrão.
“Com a aprovação do T CAR, damos um primeiro passo na direção de uma nova abordagem para curar formas de câncer antes incuráveis”, revela o Dr. Steven A. Rosenberg, chefe do setor de cirurgia do Instituto Nacional do Câncer dos Estados Unidos.
Os primeiros sinais de esperança
Na década de 1980, uma equipe liderada pelo Dr. Rosenberg foi a primeira a remover células T de pacientes com câncer, cultivá-las em laboratório e reinjetá-las no paciente – em essência, fortalecer o sistema imunológico dele a fim de combater a doença. Em um ensaio inicial desse tratamento, tumores em 11 dos 25 pacientes encolheram em pelo menos a metade, e um paciente, com melanoma maligno, ficou curado. Ainda assim, na maioria dos casos, a terapia não foi suficiente para erradicar o câncer.
Os pesquisadores, porém, continuaram a experimentar e a inovar. O imunologista Zelig Eshhar, pesquisador do Instituto de Ciência Weizmann, em Israel, pensou em usar uma técnica de terapia gênica recém-desenvolvida para tornar as células T mais eficazes no combate ao câncer. Ele utilizou engenharia genética para que células T transportassem uma cadeia de aminoácidos chamada de receptores de antígenos quiméricos (CARs, na sigla em inglês). Esses linfócitos T transportadores de CAR – ou T CARs – buscam células que possam ser cancerosas. Quando as encontram, os receptores nas células T CAR se encaixam nelas como uma chave na fechadura. Essa conexão atua como um gatilho, dizendo às células T que se multipliquem desesperadamente e matem as células cancerosas.
“A terapia com T CAR é algo bem novo”, afirma o Dr. David Porter, oncologista da Universidade da Pensilvânia. “Não é um composto ou uma substância química. É feita de células vivas. Uma vez infundida em um paciente, uma única célula T CAR é capaz de se multiplicar em 10 mil células que combatem o câncer.”
Enquanto os medicamentos, incluindo aqueles usados na quimioterapia, são eliminados do organismo e precisam ser administrados de forma repetitiva, as T CARs “continuam circulando pela corrente sanguínea, em alguns casos durante anos”, explica o Dr. Porter.
Ao longo desse período, elas conseguem rastrear e destruir mais células cancerosas que possam surgir. Isso pode explicar um dos mais promissores resultados da terapia com a T CAR.
Dos 52 pacientes que responderam ao Kymriah, dois terços não mostraram sinais de câncer um ano após o tratamento.
Na verdade, o modelo da T CAR funcionou tão bem que, em outubro de 2017, a FDA aprovou um segundo tipo, comercializado com o nome de Yescarta, para certas formas de linfoma não Hodgkin que, até agora, quase sempre eram fatais. Dos 101 adultos com linfoma difuso de grandes células B inscritos no ensaio clínico do Yescarta, 72 responderam, o que significa que o câncer nessas pessoas diminuiu ou desapareceu. Mais da metade não apresentava câncer detectável depois de oito meses de tratamento.
Um dos pacientes era médico. Diagnosticado em 2014, Jeff Backer desenvolveu massas visíveis de células de linfoma debaixo dos braços e no rosto, no tórax e no pescoço. Uma grande massa nas costas, do tamanho de um punho fechado, dificultava que ele se deitasse. Em junho de 2016, ele recebeu a nova terapia T CAR como parte de um ensaio clínico. “Em um ou dois dias, as protuberâncias começaram a ficar mais moles, menores e a desaparecer”, diz o Dr. Backer, que recentemente voltou a trabalhar como médico da emergência. “Foi como se uma bomba nuclear tivesse sido jogada sobre o câncer.”
Quase dois anos após o tratamento, o câncer do Dr. Backer continua em remissão.
O processo e o custo
Tratamentos com as T CARs são individualmente projetados para cada paciente. As células T são isoladas do sangue e então enviadas para um laboratório onde novos genes são inseridos nelas. As células são então estimuladas a crescer formando uma legião de T CARs. As células resultantes são congeladas, enviadas de volta para o paciente e reinjetadas. O processo de produção pode levar de duas a três semanas, e é caro. O custo do Kymriah: 475 mil dólares por tratamento. Do Yescarta: 373 mil dólares.
Efeitos colaterais
Como todos os tratamentos para o câncer, o T CAR tem efeitos colaterais. O perigo imediato é uma reação grave chamada de tempestade de citocina, que começa com sintomas semelhantes aos da gripe, mas pode evoluir para queda abrupta da pressão arterial, confusão extrema, alucinações, tremores e convulsões.
Hoje, os pesquisadores entendem que a reação é, na verdade, um sinal de que a terapia está funcionando. Quando as células T CAR vão, em grande número, em busca de células cancerosas, os níveis das substâncias químicas imunológicas chamadas de citocinas podem aumentar de maneira perigosa. “Em pacientes com metástase, as células T CAR destroem até três quilos de células malignas”, revela o Dr. Porter. Quanto mais extenso é o câncer do paciente, mais provável é que uma tempestade de citocina ocorra durante o tratamento.
O Kymriah e o Yescarta também têm um efeito colateral de longa duração, porém contornável. Os tipos de câncer que eles combatem, leucemia e linfoma, ocorrem quando as células B – um tipo de célula imune que protege contra infecções – sofrem mutação e se tornam malignas. Como a terapia com T CARs destrói tanto células B cancerosas quanto saudáveis, os pacientes podem ficar mais vulneráveis a infecções, como pneumonia, depois de receber o tratamento. Para reforçar suas defesas, eles precisam receber injeções periódicas, possivelmente pelo resto da vida, de gamaglobulina humana. A gamaglobulina humana trata-se de uma substância feita a partir do plasma do sangue, que é rica em anticorpos.
O caso de Emily Whitehead
Quando Emily Whitehead, a primeira criança a receber o Kymriah, sofreu uma reação potencialmente fatal, os médicos solicitaram exames de sangue que revelaram níveis crescentes de uma citocina chamada interleucina 6 (IL-6). Felizmente, o Dr. Carl June, oncologista da Universidade da Pensilvânia e chefe da investigação no ensaio clínico, conhecia um medicamento que diminuía a IL-6 – porque sua filha tomava esse remédio para tratar a artrite reumatoide juvenil. E, por sorte, o hospital tinha um suprimento da droga, denominada tocilizumab. Horas depois de receber o medicamento, Emily começou a se recuperar. O tocilizumab é hoje usado de maneira rotineira para conter os efeitos de tempestades de citocinas.
Quando as T CARs não funcionam
Apesar do constante progresso no aperfeiçoamento do tratamento, os médicos não foram capazes de explicar por que ele não funciona em algumas pessoas, mesmo naquelas consideradas pacientes ideais. A T CAR parecia funcionar como esperado em Sophia Kappen, menina de 5 anos que não respondia à quimioterapia. “Minha garotinha que sentia dor, que não conseguia andar por causa do câncer, começou a ter um pouco do seu brilho de volta”, recorda a mãe, Amy Kappen. Mas o câncer revidou. Os médicos adicionaram outra droga experimental denominada pembrolizumabe. Está droga torna o câncer mais vulnerável para o ataque, na esperança de dar uma chance melhor às T CARs. Não foi suficiente. Células malignas surgiram na corrente sanguínea da menina. Sophia morreu em 5 de abril de 2017, com 6 anos.
Após sua morte, os médicos conseguiram descobrir o que aconteceu de errado. As células B de Sophia sofreram uma mutação, de modo que as T CARs não puderam reconhecê-las; incapazes de se ligar às células cancerosas, os receptores de T CARs não conseguiam liberar a explosão de células de combate ao câncer. O mesmo fenômeno pôde ser visto em outros pacientes. E, em alguns que tiveram recidiva do câncer após o tratamento, as T CARs haviam morrido antes de a doença ter sido completamente eliminada.
Os esforços dos pesquisadores
Os pesquisadores estão trabalhando para aperfeiçoar o modelo T CAR, a fim de criar células de combate ao câncer que atacam alvos moleculares múltiplos e, portanto, tornam mais difícil para as células malignas se esconderem. Eles também estão elaborando meios de manter as células T lutando por mais tempo. Algumas células cancerosas aprenderam a desativar ataques imunes. Novas drogas, denominadas inibidores de checkpoint, foram desenvolvidas para bloquear as células cancerosas que fazem isso. Ensaios clínicos estão sendo desenvolvidos para testar se a combinação de inibidores de checkpoint com T CARs irá aumentar as chances de se exterminar o câncer.
Um longo caminho à percorrer
Até agora, a terapia com T CAR foi aprovada apenas para alguns poucos tipos de câncer do sangue e – porque o tratamento é muito caro – só depois que outros tratamentos, como quimioterapia e radioterapia, se provarem incapazes de eliminá-los. Ainda assim, ensaios clínicos já estão mostrando que as células T CAR podem funcionar contra outro câncer no sangue, o mieloma múltiplo. E há esperanças de que, em pouco tempo, a T CAR e terapias similares com células imunes conseguirão combater tumores sólidos, como os do câncer de mama, de pulmão, colorretal e da próstata. Estes constituem 90% de todos os tipos de câncer.
Mas existem obstáculos. As células T CAR precisam ser geneticamente modificadas para perseguirem um alvo específico. É fundamental escolher o alvo certo, de modo que essas células agressivas matem o câncer – e não o paciente. Os pesquisadores enfrentaram a leucemia e o linfoma primeiro porque as células B defeituosas que causam esses tipos de câncer são dispensáveis. “As pessoas conseguem viver sem células B. Assim, mesmo que o tratamento mate tanto células B cancerosas quanto saudáveis, os pacientes sobrevivem e evoluem muito bem”, explica o Dr. Rosenberg. Semelhantes alvos “seguros” têm sido muito mais difíceis de serem encontrados em tumores sólidos. “Quaisquer alvos que usemos nas células do câncer de pulmão também são compartilhados por células pulmonares saudáveis. Destrua essas células e destruiremos os pulmões do paciente.”
Uma estratégia que pode mirar de maneira mais precisa nas células malignas é uma variação da T CAR chamada de terapia com receptor de célula T. As células se tornam cancerosas como resultado de centenas de mutações. Algumas dessas mutações causam pequenas mudanças nas proteínas da superfície celular.
“O objetivo da terapia com receptor de célula T é criar células T utilizando um processo como a T CAR, que pode reconhecer essas alterações e atacar o câncer, mas deixar as células saudáveis intactas”, esclarece o Dr. Frederick L. Locke, do Departamento de Imunoterapia Celular do Moffitt Cancer Center em Tampa, na Flórida, e investigador chefe dos ensaios clínicos do Yescarta.
Outra abordagem, desenvolvida pelo Dr. Rosenberg, utiliza células T que ocorrem naturalmente e que aprenderam por conta própria a encontrar células cancerosas. Esses linfócitos infiltrantes de tumores (TILs, sigla em inglês) não são tão numerosos ou poderosos a ponto de destruir tumores. No entanto, em experimentos no Instituto Nacional do Câncer, nos Estados Unidos, o Dr. Rosenberg e seus colegas removeram pequenas quantidades de TILs de tumores em pacientes e cultivaram-nos em grandes quantidades em laboratório. Depois os reinjetaram, assim como fizeram com as T CARs. Em ensaios clínicos preliminares, os tumores encolheram e, em alguns casos, uma vasta gama de tumores sólidos – incluindo melanoma avançado, câncer do colo do útero, câncer colorretal e outras malignidades – foi eliminada.
“A maioria dos nossos pacientes não responde ao tratamento”, admite o Dr. Rosenberg. “Em alguns casos, porém, vimos remissões completas e duradouras. Sabemos que isso pode funcionar. Definitivamente, acreditamos que os TILs podem ser o modelo de tratamento de quase todos os tipos de câncer.”
Isso não vai acontecer da noite para o dia, afirma o Dr. J. Leonard Lichtenfeld, diretor médico da Sociedade Americana do Câncer. “Foram necessários comprometimento constante com as pesquisas básicas e muitos pacientes corajosos querendo participar de ensaios clínicos a fim de testar novas terapias promissoras. A terapia T CAR está salvando pacientes que, antes, não podiam ser salvos. Mas a batalha contra o câncer ainda não está vencida.”
Um arsenal de tratamentos cada vez maior
Outros tratamentos estão tendo sucesso no combate ao câncer, enquanto novas imunoterapias se mostram promissoras contra vários tipos de câncer.
Tratamentos com citocinas
As células imunológicas secretam substâncias químicas chamadas citocinas, que as ajudam a lutar contra infecções e o câncer. Diversas dessas substâncias, entre elas a interleucina-2 e o interferon, foram transformadas em medicamentos para o tratamento de melanoma, câncer dos rins e outros tipos de malignidades. Graves efeitos colaterais têm limitado seu uso.
Anticorpos monoclonais
O sistema imune produz anticorpos que combatem infecções. Pesquisadores estão desenvolvendo em laboratório anticorpos que reconhecem alvos em células do câncer. Mais de uma dúzia desses anticorpos monoclonais foram aprovados pela FDA afim de ajudar a controlar tipos de câncer, incluindo certas formas de linfoma, leucemia, e câncer colorretal, de mama, na cabeça e no pescoço.
Inibidores de checkpoint
Alguns tumores desligam as células T a fim de evitar o ataque imune. Novas drogas chamadas de inibidores de checkpoint impedem que os tumores façam isso. Estes inibidores ajudam alguns pacientes com a doença, incluindo melanoma e câncer de pulmão, rins, bexiga e de cabeça e pescoço.
Vacinas contra o câncer
O objetivo dessas vacinas é aumentar o poder das células imunológicas para que destruam células malignas que estão no corpo. As vacinas do papilomavírus humano e hepatite B já estão prevenindo formas de câncer cervical e fígado causadas por vírus. Ano passado, a FDA aprovou o sipuleucel-T, ou Provenge, vacina que prolonga a vida de alguns pacientes com câncer de próstata. Vacinas para câncer de pulmão, de mama, colorretal e outros tipos encontram-se em ensaios clínicos.
Encontre um ensaio clínico
Para os pacientes que não respondem aos tratamentos convencionais, um ensaio clínico pode ser a resposta.
O primeiro passo é conversar com o médico. Ele orientará o paciente em relação a essa possibilidade. Estudos clínicos confiáveis estarão registrados em uma plataforma na internet, por exemplo: https://www.clinicaltrials.gov (em inglês), www.ensaiosclinicos.gov.br ou https://www.vencerocancer.org.br/protocolos/(estas duas em português).
Mas atenção: entender os detalhes científicos complexos dos ensaios clínicos pode ser intimidador. Reforçamos a importância de consultar um médico especialista para sanar as dúvidas.
Por Peter Jaret