A melhor defesa contra o coronavírus

Muita gente culpa a globalização pela pandemia do novo coronavírus e diz que a única maneira de prevenir outros surtos é desglobalizar o mundo. Construir

Redação | 1 de Junho de 2020 às 01:01

©fanatic studio/Getty Images/Collection Mix: Subjects RF -

Muita gente culpa a globalização pela pandemia do novo coronavírus e diz que a única maneira de prevenir outros surtos é desglobalizar o mundo. Construir muros, restringir viagens, reduzir o comércio. No entanto, embora a quarentena de curto prazo seja essencial para deter epidemias, o isolacionismo de longo prazo levará ao colapso econômico sem oferecer nenhuma proteção real contra doenças infecciosas. É bem o contrário. O verdadeiro antídoto da epidemia é a cooperação.

Epidemias mataram milhões de pessoas muito antes da era atual da globalização. No século 14, não havia aviões nem transatlânticos, mas a Peste Negra se espalhou da Ásia Oriental até a Europa Ocidental em pouco mais de uma década e matou pelo menos um quarto da população. Em 1520, o México não tinha trens nem mesmo burros de carga, mas em apenas um ano uma epidemia de varíola dizimou até um terço dos seus habitantes. Em 1918, uma cepa muito virulenta de gripe conseguiu se espalhar em poucos meses até os cantos mais remotos do mundo. Assim, a Gripe Espanhola infectou mais de um quarto da espécie humana e matou dezenas de milhões de pessoas.

No século decorrido desde 1918, a humanidade ficou ainda mais vulnerável a epidemias, por conta da combinação “crescimento populacional e meios de transporte melhores”. Hoje, um vírus pode viajar pelo mundo em 24 horas na classe executiva e contaminar megacidades com milhões de habitantes. Portanto, seria de esperar uma vida no inferno infeccioso, com uma praga fatal atrás da outra.

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No entanto, na verdade, a incidência e o impacto das epidemias caíram drasticamente. Apesar de surtos horrendos como os de Aids e Ebola, no século 21 as epidemias matam uma proporção muito menor de seres humanos do que em qualquer época anterior, desde a Idade da Pedra. Isso acontece porque a melhor defesa que as pessoas têm contra os patógenos não é o isolamento – é a informação. A humanidade está vencendo a guerra contra as epidemias porque, na corrida armamentista entre os patógenos e os médicos, aqueles recorrem a mutações cegas, enquanto estes se baseiam na análise científica das informações.

No último século, cientistas, médicos e enfermeiros do mundo inteiro reuniram informações e, juntos, conseguiram entender tanto o mecanismo por trás das epidemias quanto os meios de combatê-las. A teoria da evolução explicou por que e como as novas doenças eclodem e as antigas se tornam mais virulentas. A genética capacitou os cientistas a espionar o manual de instruções do próprio patógeno. Depois que os cientistas entenderam o que causa as epidemias, ficou muito mais fácil combatê-las. Vacinas, antibióticos, aumento da higiene e uma infraestrutura médica muito melhor permitiram à humanidade vencer a batalha contra seus predadores invisíveis.

O que essa história nos ensina sobre a atual pandemia de coronavírus?

Primeiro, indica que não é possível se proteger fechando permanentemente as fronteiras. Não se esqueça de que as epidemias se espalham rapidamente, mesmo na Idade Média, muito antes da era da globalização. Portanto, mesmo que reduzíssemos nossas conexões globais ao nível de um reino medieval, não seria suficiente. Para realmente se proteger com o isolamento, você teria de voltar à Idade da Pedra. Você consegue?

Segundo, a história indica que a verdadeira proteção vem da divulgação de informações científicas confiáveis e da solidariedade global. O país atingido por uma epidemia deveria se dispor a dividir informações sinceras sobre o surto, sem medo de catástrofe econômica, enquanto os outros países deveriam ser capazes de confiar nessas informações e se dispor a estender a mão amiga em vez de pôr a vítima no ostracismo.

A cooperação internacional também é necessária para tomar medidas eficazes de isolamento. A quarentena e o confinamento (lockdown) são essenciais para impedir a disseminação das epidemias. Mas, quando os países desconfiam uns dos outros e cada um acha que está por conta própria, os governos hesitam em tomar essas medidas drásticas. Se você descobrisse 100 casos de coronavírus em seu país, confinaria imediatamente cidades e regiões inteiras? Em grande medida, isso depende do que você espera dos outros países. Confinar as próprias cidades poderia provocar colapso econômico. Se achar que os outros países vão ajudá-lo, será mais provável que você adote essa medida drástica mais cedo.

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Talvez o mais importante a perceber nessas pandemias é que a disseminação da epidemia em qualquer país põe em risco toda a espécie humana. Na década de 1970, a humanidade conseguiu erradicar completamente o vírus da varíola porque todas as pessoas de todos os países foram vacinadas contra a varíola. Se deixasse de vacinar sua população, um único país poderia pôr em risco toda a humanidade, porque, enquanto existisse e evoluísse em algum lugar, o vírus da varíola poderia sempre se disseminar de novo por toda parte.

Na luta contra os vírus, a humanidade precisa vigiar as fronteiras com atenção. Mas não as fronteiras entre países. Em vez disso, é preciso vigiar a fronteira entre o mundo humano e a esfera dos vírus. O planeta Terra está cheio de incontáveis tipos de vírus, e os novos estão constantemente evoluindo por causa de mutações genéticas. A linha que separa essa esfera dos vírus do mundo humano passa por dentro do corpo de cada um de nós. Quando consegue atravessar essa fronteira em qualquer lugar da Terra, um vírus perigoso deixa toda a espécie humana em risco.

No último século, a humanidade reforçou como nunca essa fronteira. Foram construídos sistemas modernos de assistência médica para servir de muro, e enfermeiros, médicos e cientistas são os guardas que o patrulham e repelem os invasores. No entanto, setores extensos dessa fronteira ficaram lamentavelmente expostos. Há centenas de milhões de pessoas no mundo inteiro sem acesso nem mesmo à assistência médica mais básica. Isso põe todos nós em risco. Estamos acostumados a pensar na saúde em termos nacionais, mas oferecer melhor assistência médica a iranianos e chineses também ajuda a proteger israelenses e americanos de epidemias. Essa verdade simples deveria ser óbvia para todos.

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Hoje, a humanidade enfrenta uma crise aguda, consequência não só do coronavírus como da falta de confiança entre os seres humanos. Para derrotar epidemias, as pessoas precisam confiar nos cientistas especializados, os cidadãos precisam confiar nas autoridades públicas e os países precisam confiar uns nos outros. Nos últimos anos, políticos irresponsáveis corroeram deliberadamente a confiança na ciência, nas autoridades públicas e na cooperação internacional. Em consequência, estamos enfrentando essa crise desprovidos de líderes globais que possam inspirar, organizar e financiar uma reação global coordenada.

Durante a epidemia de Ebola em 2014, os Estados Unidos funcionaram como esse tipo de líder. O país teve papel semelhante na crise financeira de 2008, quando reuniu atrás de si países suficientes a fim de prevenir um desastre econômico global. Mas, em anos recentes, ele abriu mão desse papel de líder global. O atual governo americano suspendeu o apoio a entidades internacionais e deixou claríssimo ao mundo que os Estados Unidos não têm mais amigos reais, só interesses.

O vácuo deixado pelos Estados Unidos não foi preenchido por ninguém. Hoje, a xenofobia, o isolacionismo e a desconfiança caracterizam a maior parte do sistema internacional. Sem confiança e solidariedade global, não seremos capazes de deter a pandemia do novo coronavírus.

Se ela resultar em maior desunião e desconfiança entre os seres humanos, será a maior vitória do vírus. Quando os seres humanos brigam, os vírus dobram. Por outro lado, se essa pandemia resultar em cooperação global mais íntima, será uma vitória não só contra o novo coronavírus como contra todos os patógenos futuros.

POR YUVAL HARARI

Yuval Noah Harari é professor de História da Universidade Hebraica de Jerusalém e autor dos livros Sapiens (L&PM), Homo Deus e 21 lições para o século 21 (ambos da Companhia das Letras).
Adaptado da Revista Time (15 DE MARÇO DE 2020), © 2020 YUVAL NOAH HARARI, TIME.COM