Curioso como as referências culturais se perdem na memória. Por isso é saboroso quando livros como o de Alexandre Straut fazem esse caminho de volta.
Como estou às voltas novamente com os anos 80 para fins de pesquisa, desde que resolvi vasculhar meus guardados e dar continuidade ao juvenil Amor de longe, vez ou outra dedilho textos que remetem a esse tempo histórico. Curioso que alguns elementos se perderam na memória e algumas referências culturais idem. Por isso é saboroso quando textos fazem o retrocesso. Sou daquelas que não conseguem entender como alguém pode não ter conhecido aquela década perdida que, para mim, foi inesquecível… Um desses livros é O incêndio de Alexandre Staut.
Este é um romance de várias camadas intertextuais, que trabalha no nível das citações literárias, uma vez que o narrador é um velho bibliotecário em suas incursões pelas prateleiras e páginas de uma biblioteca em vias de ser destruída por um incêndio.
Mas meu foco não é precisamente nessa abordagem e sim no contraponto: corpo e leitura. A história mistura sonho, delírio, leitura, ficção e realidade, com idas e vindas a um passado localizado exatamente nos anos 80 do então garoto cheio de espinhas que, aos poucos, ao mesmo tempo em que se descobre no espelho também descobre o prazer de viver entre os livros.
E mais: havia um livreiro
que parecia ter como missão na vida
me transformar em leitora voraz.
Imediatamente me reportei ao passado que no momento tento escavar. Estou de volta ao ano de 1983 quando eu era adolescente e descobria não só a festa dos primeiros amores como igualmente o prazer da leitura.
A pequena cidade para a qual eu havia me mudado não tinha muitas atrações culturais. Talvez um cenário parecido com o do narrador do livro. Mas havia uma livraria bem em frente à casa da minha avó. E mais: um livreiro que parecia ter como missão na vida me transformar em leitora voraz.
A partir daquele momento, em que eu deixava de lado a cidade de origem – uma capital efervescente – em troca daquele cenário menos febril, comecei a mergulhar nos livros e, de sugestão em sugestão, ia aumentando a minha biblioteca pessoal. Muitos dos títulos que comprei naquela despretensiosa livraria tenho guardados até hoje.
Interessante que, seja em uma biblioteca ou livraria, há sempre alguém que nos serve de referência para que a viagem pelos meandros das páginas aconteça de forma ainda mais prazerosa. Um breve trecho de O incêndio para ilustrar o tema:
“O vão entre as prateleiras eu exploro desde os tempos da antiga bibliotecária. Ela me ensinou a andar sem medo de me perder. Num tempo em que já era frequentador da casa, descobri que, em meio ao labirinto de livros, podia respirar a pleno pulmão. A cada passo, eu percebia um homem se formando no corpo mirrado, as costeletas, os odores das axilas, a coceira no sexo, tudo mostrando que os colegas da escola erravam ao me apontar o dedo na fuça: ‘o maricas, o cabaço.’ Eu era um homem.”
Em tempo: a livraria dos meus anos 80, cravada bem no coração da minha adolescência, se chamava Liberdade.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora – autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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