Sei que pode ser uma tremenda incongruência: detesto andar de barco, navio e similares porque não gosto de sentir o chão balançar como se eu estivesse
Sei que pode ser uma tremenda incongruência: detesto andar de barco, navio e similares porque não gosto de sentir o chão balançar como se eu estivesse pisando areia movediça. Mas… adoro ver barcos, assim como adoro ver telhados. Posso ficar horas a fio nessa contemplação. Não gosto de grandes veleiros ou transatlânticos que me dão profunda agonia – como conseguem flutuar? Gosto dos barquinhos de pesca, aqueles coloridos que atracam nas pequenas cidades à beira-mar.
A sensação de paz que essas cenas me dão são inexplicáveis. Posso pensar na pesca milagrosa, referência aos discípulos do Cristo que eram pescadores… Aquela ideia de fartura a partir da sugestão de que a gente precisa aprender a jogar a rede do lado certo das águas é de uma simbologia que me encanta. Curioso é que, na sincronia deste movimento, eu estava de férias em um lugar cheio dessas pequenas embarcações coloridas, e o livro que eu tinha nas mãos para esta coluna não era outro senão Histórias guardadas pelo rio, da Lúcia Hiratsuka.
“Quero conhecer o segredo da pesca. Pode me ajudar?”
Este é o Pedro (me lembrei do discípulo) que decide sair à procura de alguém que explique a ele o segredo da pesca de… histórias!
Ele precisava encontrar uma pessoa capaz de lhe ensinar. Mas quem disse que o segredo se aprende de uma vez só? Ele começa a perambular de ponto a ponto, de palavra em palavra, ouvindo conselhos e ensinamentos, uma aprendizagem longa que o transforma em andarilho.
“O barco onde singramos é um armazenamento da memória.”
Pensei se o escritor não é esse pescador que está sempre à procura do lado mais farto dos rios, desse “milagre” que é o surgimento de uma nova história. E quantas vezes um texto não surge exatamente de uma perambulação íntima, quando a imaginação solta as redes em busca de ideias (peixes, histórias) para rechear nosso barco?
A partir deste livro tão singelo e lindamente ilustrado pela própria Lúcia, que tem um trabalho incrível com desenhos de peixes, diga-se de passagem (basta olhar a sua bibliografia), pensei que o barco onde singramos é um armazenamento da memória; assim como os pescadores, acumulamos as histórias de navegações pelo mundo e pelo mundo das pessoas que fazem parte de nossa trajetória ao longo dos anos.
“Qual das estradas tomar? A da direita ou da esquerda? Não fazia ideia do lugar a que cada uma delas levava. Sentou-se em uma pedra, indeciso, observando a paisagem.”
Sim, Pedro, contemplar também é pescar histórias.
Um 2020 cheio de redes plenas para nós.
Por Cláudia Nina