Sou da geração da máquina de escrever logo que comecei no jornalismo. Mas quando me tornei escritora esse tempo já havia passado, e minha ficção não
Sou da geração da máquina de escrever logo que comecei no jornalismo. Mas quando me tornei escritora esse tempo já havia passado, e minha ficção não conheceu o ruído das teclas. Não tinha pensado sobre isso – o som das palavras – até ler a reflexão de Pedro Gonzaga em seu recente livro de crônicas, Antes não era tarde. Em um dos textos intitulado “Na nave”, ele conta que a ideia de ser escritor nasceu quando ouvia o som das teclas que ecoava pela sua casa. O autor lamenta “a morte” desse som: “Creio termos perdido alguma coisa quando mataram o som das palavras no papel (…) eu também sou um assassino.” E acrescenta: “O tempo converteu tudo em plástico nos teclados dos computadores, esterilizou qualquer ruído nas superfícies de vidro temperado.”
Pensei, imediatamente, na velha máquina de escrever alaranjada que foi o sonho da minha juventude. Quantas vezes enchi a casa com o som das teclas. Nunca imaginei um mundo desprovido desse som. Até que vieram os computadores, e minha máquina se perdeu para sempre. O silêncio digital tomou conta da produção.
Não costumo guardar o que não uso mais – às vezes, nem como memória saudosa. Tenho facilidade em fechar ciclos. É quase uma necessidade íntima apagar o que pertence aos ciclos anteriores da minha vida. Não que eu me esqueça. Simplesmente não cultivo nostalgia. Por isso, não há vestígios dessa antiga máquina de escrever em meu escritório de hoje. E nunca havia pensado no ruído que ela fazia ou no silêncio que restou depois dela. Curioso como a matéria da crônica pode ser, entre outras, os despojos que um dia montaram a oficina da nossa vida diária.
Quando penso na máquina, logo me aparece uma série de pequenas possíveis histórias que eu poderia com certeza transformar em crônicas.
Este livro de Pedro Gonzaga é, além de tudo, um giro em torno do próprio fazer do gênero, e quem se dispõe a escrever deveria passar por estas páginas. Entre os textos, há uma espécie de decálogo em que o autor expõe seus mandamentos. Um deles me pareceu especialmente interessante: “A crônica é sobre a luta da criatura humana contra o tempo: o que se perde, o que se preserva, o que se transforma durante o combate. Os despojos desse combate, a isso chamamos crônica.”
Então, volto à velha máquina alaranjada e me vejo neste embate entre minha falta de nostalgia e as histórias que renascem em forma de crônica a partir da lembrança dos antigos ruídos das teclas. São inevitáveis. As histórias aparecem. A isso se chama ser escritor: quando as histórias aparecem, ainda que ninguém as convoque.
Deixo vocês com essa dica literária para fechar meu ciclo na Papo de Livro. Me despeço da coluna, mas não da Seleções. Vocês me encontram no site da revista, com minhas Histórias que a vida conta – um texto novo a cada domingo. Escrevam, deixem suas impressões e comentários. Foi um tempo longo e muito rico. A maior alegria é que nada do que se escreveu se apaga: resistirá ao tempo, não só no espaço da web, mas também na lembrança dos meus leitores.
POR CLAUDIA NINA
Claudia nina é jornalista e escritora, autora, entre outros, de Paisagem de porcelana (Rocco).