Cláudia Nina comenta sobre suas experiências ao ler "Dois meninos de Kakuma", sobre o cotidiano de uma criança refugiada no Quênia.
A vida nas livrarias tem uma mágica secreta. Passar uma tarde dentro de uma “loja de livros” é um dos momentos mais cálidos nesta corrida que se chama existência. Outro dia fiz isso na minha livraria preferida de São Paulo. Não foi uma tarde inteira, mas algumas deliciosas horas. No meio da multidão de títulos, um deles estava à espera. A velha história de que os livros esperam por seus leitores aconteceu comigo naquele dia. Alguns dias antes, eu tinha visto um livro de raspão. A postagem no Instagram me mostrava a capa – achei intrigante, mas deixei quieto. Passei os olhos apenas.
Dois meninos de Kakuma
No passeio pela livraria, em uma mesa de computador, sozinho, sem a companhia de outros títulos para dispersar minha distraída atenção, o livro estava lá – o mesmo que havia me intrigado. Pensei: não posso deixar de ter, ainda mais depois de folhear as fotos que acompanham as histórias, que são de uma beleza doloridíssima.
Trata-se de Dois meninos de Kakuma, da fotógrafa e jornalista Marie Ange Bordas, que desde 2008 desenvolve o projeto Tecendo Saberes, no qual produz livros com crianças de comunidades. Este, em especial, conta a história de dois amigos inseparáveis, crianças que fugiram das guerras na África e foram para um campo de refugiados que dá nome à obra – um espaço de passagem eterna, um entrelugares sem cercas nem muros, mas de onde ninguém quase nunca sai, como é o caso dos garotos que narram.
“Um dia veio a guerra, mataram meu pai, e minha mãe precisou fugir. Só teve tempo de pegar algumas coisas e sair correndo, levando minha irmã pela mão. Eu estava bem protegido, dentro de sua barriga”, diz o primeiro deles, Geedi, vindo da Somália. Leio e releio a obra, que são grandes olhos brilhantes sobre questões cruciais que parecem não ter solução. Os garotos contam como conseguem sobreviver nesse tempo suspenso. Quem fala agora é o Deng, refugiado do Sudão:
“Enquanto não posso voltar para a minha gente, eu estudo. Estudar, como correr, é um jeito de mandar na própria vida.”
E mais um trechinho: “Quem dera fôssemos todos como os milhares de antílopes que há décadas migram em busca de água no Sudão, cruzando o país ano após ano, ignorando a guerra e o desmatamento. Vão e voltam, livres, resistentes e decididos. Nós também migramos, em busca de água ou segurança, mas sem a liberdade de voltar.”
A imersão nessa pequena África que é o gigantesco campo de Kakuma passa pelo registro das fotos, que arrastam a gente para aquele mundo em alguns segundos de tão lindas e comoventes. Depois da leitura, fiquei ainda mais instigada a fazer alguma coisa que juntasse o jornalismo à literatura. Quem sabe, secretamente, eu já não esteja criando algo sem que eu mesma saiba? Assim funciona a criação…
Por Claudia Nina