Ainda me lembro, como se fosse hoje, da última cena dos meus pais sumindo no aeroporto enquanto eu entrava para o embarque rumo a uma temporada de quatro
Redação | 6 de Abril de 2019 às 11:00
Ainda me lembro, como se fosse hoje, da última cena dos meus pais sumindo no aeroporto enquanto eu entrava para o embarque rumo a uma temporada de quatro anos na Holanda. Meu pai segurando minha mãe pelo ombro, como costumava fazer.
Eles me olhavam como se soubessem da impossibilidade de recolher a linha do anzol – eu era o peixe perdido no mar. Olhei para trás em dor, mas meu ímpeto de vencer o mundo era maior. E dei as costas para a cena dos meus pais em despedida silenciosa sem jamais apagar do álbum aquela imagem-memória.
Embarquei metade de mim radiante; a outra metade estava triste por deixar o país onde eu era amada e compreendida, onde eu tinha um trabalho, um espaço de atuação, as pessoas entendiam o que eu escrevia e esperavam por isso – esperavam pela minha palavra.
Ao deixar o Brasil, naquele exato momento, eu entraria em um entre-espaço de “silêncio oco”. E tive medo. Talvez me faltasse o gosto da aventura em não pousar, pois em terras alheias eu secretamente adivinhava que não seria acolhida da forma como gostaria. Ao estrangeiro, a eterna deriva.
Estes pensamentos me vieram com mais força depois de ler o livro de poemas do professor da Sorbonne Leonardo Tonus, “Agora vai ser assim“.
Diferente de mim, ele não saiu do Brasil para uma temporada apenas. Ele se lançou na coragem de viver em terras alheias – Paris – e naquela cidade construir sua carreira. Aprendeu a língua, dominou o espaço de conquista.
Mas quem imagina que a dor que perpassa o sentimento de bater a porta da rua, abandonar família e raízes, é algo que se aplaca facilmente precisa com urgência ler estes versos.
Tonus faz uma aproximação entre os que de alguma forma estão em trânsito permanente, em busca de acolhida, chão, abrigo – os migrantes de todas as latitudes e circunstâncias, transpondo muros ou oceanos, em pequenas embarcações ou navios negreiros. A dor é aquela de quem parte
“Estou com saudade,/murmuro silencioso temendo despertar os/velhos fantasmas/ da casa abandonada/das ruas esquecidas/da família/da língua/dos afetos”. E neste trecho de “Ouriço”:
Abandonei a terra.
A família.
A casa da família.
Perdi o giz da lousa
nos cascalhos banhados
pelas ondas do mar.
Minha identidade é profunda.
Sou o ralo do mundo.
Um buraco.
Um homem-buraco
que nada há de preencher.
Busquei a memória do meu tempo à deriva e percebi como é bom poder rasgar o “silêncio oco”, como escreve Tonus, com a possibilidade da arte. A palavra pode salvar alguém da solidão, eu acredito. E lembrar que escrever é, antes de tudo, um gesto.