Ainda não sei explicar as motivações profundas do fato, mas, quando eu morava na Holanda e fazia doutorado, um dos livros aos quais me apeguei foi A
Ainda não sei explicar as motivações profundas do fato, mas, quando eu morava na Holanda e fazia doutorado, um dos livros aos quais me apeguei foi A metamorfose, de Kafka. É um dos meus favoritos, assim como vários do autor. Era uma época em que eu só pensava em me tornar escritora de ficção num futuro longínquo. O tempo, como era de se esperar, passou. E o futuro chegou. Chegou também a inspiração. E os meus primeiros livros foram surgindo aos poucos.
Este ano foi a vez do infantil Ana-Centopeia. A história é uma mistura de várias referências, começando pela minha filha, Anne, e sua paixão por sapatos quando ainda mal sabia falar. Além do biográfico, imaginem o que mais está na base da criação deste meu novo livro? Kafka e A metamorfose.
Conto a experiência – sonho, imaginação? – de uma criança que de repente acorda centopeia. Transformações, medo, coragem. São os elementos que animam esta aventura de um dia; tudo começa em uma manhã e termina na outra.
“Uma menina virar centopeia da noite para o dia não é a mesma coisa que acordar com catapora. Aquele ‘mal-estar’ não tinha nome. Não havia no mundo remédio para meninas que se sentem como centopeias.”
Quantas vezes a gente é simplesmente tomada por sensações que não se explicam? Tentamos verbalizar, mas a palavra não acontece. Uma angústia, um incômodo, uma sensação de não pertencimento ao mundo e às situações? E não pensem que só os adultos sofrem deste mal. Volto ao cenário de onde parti quando comecei este texto e começo a entender um pouco mais sobre minha leitura sistemática de A metamorfose…
Talvez ali tenha sido o momento da minha vida em que mais me senti estranha, quem sabe tanto quanto o personagem de Kafka.
Não são curiosos os caminhos das histórias? Assim é a criação. Um trabalho é sempre fruto de uma laboriosa mistura de ideias, imagens, inspirações, sugestões. E o tempo, como eu costumo dizer, é um filtro poderoso que irá organizar e separar o que vale ser transformado em ficção do que deve ser mantido em segredo.
Eu sempre escrevo assim desde que me entendo por autora.
Curiosos? Ficou lindo o resultado. E que venham outras tantas histórias pela frente, porque o “futuro longínquo” é agora e já!
POR CLAUDIA NINA
Claudia nina é jornalista e escritora, autora, entre outros, de Paisagem de porcelana (Rocco).