O metafísico no cotidiano

Conheci um homem que costumava sonhar com uma figura que ele dizia ser o Diabo. Isso me intrigava, porque eu não conseguia entender como ele tinha tanta

Redação | 3 de Julho de 2019 às 11:21

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Conheci um homem que costumava sonhar com uma figura que ele dizia ser o Diabo. Isso me intrigava, porque eu não conseguia entender como ele tinha tanta certeza. Podia estar sendo enganado por algum outro sobrenatural fantasiado. Nunca levei a sério o medo, mas entendi depois que na “aparição” estavam séculos de um conhecimento metafísico, psicológico, literário… Cabem muitas explicações no caso. Certamente, esse amigo sonhador adoraria ler o mais recente trabalho de Sidney Garambone, Fausto tropical.

A premissa é a seguinte: e se ele próprio, em pessoa, sem retoques, ele mesmo, o Lúcifer, que também atende pelo nome poético de Fausto, aparecesse em pleno Rio de Janeiro do século 21? Está certo que a cidade anda sofrida e sem peias, mas que baita imaginação a de Sidney optar por transformar o Rio em cenário para o surgimento desse assaltante de… almas? Mas será que o tal anda à procura do que é invisível aos olhos?

Fausto surge, sim, no Rio, diante de um homem chamado Victor, que, antes da aparição, já andava às voltas com uma reflexão sobre alguns de seus atos neste mundo de meu Deus. Mas Fausto não veio atrás de almas, como explica: “A alma, Victor, é uma percepção romântica da mente. A alma é a mente. O epicentro da vida está na cabeça e não no coração. Como o pensamento não é palpável, tem-se a impressão de que ele flutua entre o crânio e o cérebro.”

A indagação de Victor seria, então: o Demônio, na verdade, é um usurpador de mentes e não de almas?

A conversa segue em alguns impasses metafísicos no rumo de um passeio por várias referências literárias, já que Victor trabalha em um sebo. Faz incursões pelo cotidiano na cidade, suas ruas, seus bairros, vícios e delícias, incluindo, claro, um amor perdido – Paulina. Nada é em vão, cada ponto da história tem um link em algum outro “site”. As referências se misturam, erudição e cultura pop estão lado a lado, como morro e asfalto, o mapa da cidade caos e maravilha.

Entre as ideias que se insinuam ou se deterioram ao longo da leitura talvez esteja a indagação: será que nossa porção pior teria o poder de chamar pelo inominável?

Entre verdades e mentiras, o livro é também um jogo de perguntas e respostas sobre a condição humana, os medos mais profundos que talvez não tenham se perdido na Idade Média, e podem estar mais perto do que imaginamos. Como no carro do personagem Victor, ou dentro dos pesadelos daquele meu amigo de que falei no início deste texto…

POR CLAUDIA NINA

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