Confira a resenha do livro Dias raros, de João Anzanello Carrascoza feita por Cláudia Nina.
Redação | 17 de Janeiro de 2019 às 11:00
Inspire-se com as reflexões de Cláudia Nina, jornalista e escritora, sobre o livro Dias raros, de João Anzanello Carrascoza:
Acordei com o pensamento de idealizar uma espécie de oficina – ou semelhanças – para traçar um caminho possível entre a memória e a ficção. Tenho pensado muito sobre isso. A linha que vai de um ponto ao outro é marcada por várias possibilidades de engano. Não basta se lembrar de tudo. Talvez seja melhor que a memória seja meio esburacada para que a história aconteça com mais força.
Eu, por exemplo, tenho uma memória péssima. Sou capaz de me lembrar de um detalhe – as linhas nos dedos da mão de uma pessoa que conheci há 30 anos –, mas igualmente capaz de me esquecer de coisas fundamentais. Acho que isso explica em parte meu desejo de escrever desde sempre. Escrever é guardar.
Costumo trabalhar com alguns lampejos de passado em minha ficção.
O grosso se constrói a partir de invenção, já que os fatos são difíceis de serem relembrados em minúcias, e um bom texto precisa delas. Escrever de raspão me parece render-se a um texto preguiçoso. A riqueza de observações, ainda que sejam observações da alma de personagens e paisagens, são aquelas que cavam o fundo da terra de um texto – quando alguma coisa realmente se escreveu.
Nestas férias escolares, em que a volta à casa de mães e parentes é algo quase inevitável, deparei com uma série de fotos e recortes de outras vidas que eu tive – dariam um livro? Sim e não. Qualquer coisa pode virar livro. Esta é a questão.
O cotidiano é cheio de relances capazes de render lindas histórias.
Depende da forma como nos aproximamos dele. Talvez uma das lições primeiras na minha imaginária oficina seria rever o que se vivenciou com olhos de criança – difícil exercício – em vez de moralizar ou amadurecer as recordações que podem cair no chão, desfazendo-se por completo… Isto é precisamente o que Carrascoza faz com esplendor – reflorir vivências.
Um exemplo está nos contos de Dias raros, em que situações prosaicas ganham uma existência flutuante na ficção, ainda que, em muitos momentos, o que se descreva seja dolorido ou rascante. Uma simples viagem à praia, por exemplo, fica assim, tocada pela raridade com que o autor observa o cotidiano:
“O tempo, no ponteiro dos minutos, a serra se finando, macia, o asfalto em linha reta outra vez. E, então, uma banca de frutas, a mulher sedenta por uma água de coco, o homem por uma pausa, as crianças descobrindo, alegres, as bananinhas-ouro, tão pequenas…. Pararam, sem pressa. Nenhuma. Apenas o gosto de estar ali. E muita era a satisfação, e inédita, e rara, e intensa. Eles, virgens para aqueles momentos, para todos os momentos, para qualquer momento. A vida só sendo.”
Na maioria das vezes, não se consegue prestar atenção à raridade dos momentos. Ou mesmo ao seu ineditismo. Fica por conta do tempo a tarefa de refletir sobre a grandiosidade do que se viveu no miolo dos dias comuns.
Trabalho da memória – ou da ficção, quem sabe, que poderá fazer flutuar de novo o que se perdeu. Mas há que se ter cuidado – passar da vida ao texto é um movimento tão delicado quanto equilibrar pratos.