A ficção é a mágica da transformação

Outro dia, em um café, conversando com um amigo roteirista e produtor de cinema e TV, ele me dizia que nenhuma ficção é mais surpreendente do que a

Julia Monsores | 10 de Outubro de 2019 às 14:00

aleksey-martynyuk/iStock -

Outro dia, em um café, conversando com um amigo roteirista e produtor de cinema e TV, ele me dizia que nenhuma ficção é mais surpreendente do que a realidade. E me contou dois casos incríveis, noticiados, dos quais eu não me lembrava. Certamente dariam pano para vários roteiros e ninguém diria terem sido cortados do real.

Falávamos sobre o romance que acabei de terminar e que tem o Nordeste como cenário. Acho que já mencionei aqui algo a respeito… Eu dizia que este meu trabalho é inspirado em fatos que aconteceram. Mas que são tão cruéis que a gente chega a duvidar.

A história real, que serve de substrato, pode ser ainda mais pesada, mas a ficção é a mágica da transformação

Na verdade, o mundo da ficção tem suas leis que regem os absurdos e os sustentam diante do público. A história real, que serve de substrato, pode ser ainda mais pesada, mas a ficção é a mágica da transformação – a forma como a arte se faz, seja na página ou na tela, orienta o olhar ou os sentidos tornando aparentemente tudo mais impactante.

Há pouco li um romance que faz tremer o chão das verdades. O cenário é um sertão que poderia ser improvável, mas sabemos que não é; embora os fatos narrados possam – ou não – ter ocorrido na realidade, o Nordeste é tão rico e fabuloso em matéria de situações inusitadas que os assombros são mais do que verossímeis. Falo do belíssimo Torto arado, de Itamar Vieira Júnior, vencedor do Prêmio Leya 2018.

Tudo começa quando duas irmãs descobrem uma faca debaixo da cama da avó – mistério milenar – e caminha logo em seguida para um derramamento de sangue, quando uma delas perde a língua. A partir daí elas formam uma espécie de pacto, pois o incidente as aproxima ainda mais:

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“Uma seria a voz da outra. Deveria se aprimorar a sensibilidade que cercaria aquela convivência a partir de então. Ter a capacidade de ler com mais atenção os olhos e os gestos da irmã. Seríamos iguais. A que emprestaria a voz teria que percorrer com a visão os sinais do corpo da que emudeceu. A que emudeceu teria que ter a capacidade de transmitir com gestos largos e também vibrações mínimas as expressões que gostaria de comunicar.”

Os personagens têm corpo, dimensão, e as situações narradas naquela terra bruta saltam na direção do nosso asfalto de cada dia.

Do autor, eu já tinha lido o romance anterior, A oração do carrasco, e gostado muito. Itamar é geógrafo e doutor em estudos étnicos pela Universidade Federal da Bahia. Seus textos ficcionais são cada vez mais oportunos por jogar luz em torno de realidades que poderiam ficar submersas nos delírios de seus fabuladores ou das gentes que falam com fantasmas como a senhora personagem de Torto arado.

Leitura fundamental. Superindico.

por Claudia Nina