Antigamente, mandávamos cartas, hoje, apenas mensagens instantâneas. Confira as reflexões da jornalista e escritora Cláudia Nina sobre o amor na atualidade:
Dia desses me caíram nas mãos umas cartas que enviei a um amigo há mais de 30 anos.
A mesma pessoa para a qual hoje escrevo mensagens no WhatsApp. Pensei quão inimaginável seria no século passado a ideia de um telefone que manda cartas. Sim, vocês também já pensaram nisso. Ocorre que mandei para ele um recorte do texto de cem anos atrás e anexei à mensagem do Whats. Percebi que era quase um palimpsesto – as cartas originalmente estavam “raspadas” da minha memória, pois não me lembrava da existência delas. Quando ressurgiram, foi quase como um achado arqueológico: precisei estudar a caligrafia, pesquisar os temas narrados, os desenhos que eu gostava de fazer… Estudar a mim mesma com o intuito de me achar no passado.
Logo percebi que estava sobrepondo ferramentas e pensei em como, hoje, construímos pelo WhatsApp relações de amizade e de amor com quem está distante. A velha história: será que a tecnologia interfere no conteúdo? Claro que sim. Envolvida pelo passado, me vi em plena aula de Comunicação ouvindo que “o meio é a mensagem”.
Quando se escreviam cartas, o tempo da procura pela palavra certa poderia demorar dias até que a “mensagem” estivesse pronta. O correio era quase como uma garrafa no mar – demorava até que a palavra chegasse ao destino. Existe inevitavelmente uma reprogramação em tudo o que se escreve desde que mudamos de ferramenta. Queria sondar até que ponto isso interfere no literário…
Estas reflexões surgiram também quando deparei com um livro bem interessante de contos.
Alguns deles tentam narrar uma história de amor, especialmente o começo de um romance, que é quando se quer falar ou escrever sobre um sentimento e buscamos uma palavra certa que o signifique. O livro se chama Palavras são para comer, de Myriam Campello, e um dos contos é o “Flare”, no qual um homem fala de seu amor por Helena:
“(…) fui dizendo amém, invadindo como quem não quer nada o campo misterioso de Helena até ouvi-la murmurar um dia, Acho que me apaixonei por você, e eu, burro de pai e mãe, em vez de ouvir aquele acho registrei mesmo o foguetório do sim, a gente só escuta o que alisa nossas plumas, a sobra é levada pelas ondas.”
Imaginei isso tudo sendo dito em mensagens de WhatsApp e percebi que muito do que se produz hoje pode estar infectado pelo vício (ou vírus?) das mensagens rápidas e pela estética da recepção imediata: a pontuação, o vocabulário, a forma como se organiza um diálogo, as frases ditas no meio das narradas sem que seja anunciada a diferença.
Outro conto que me chamou a atenção quanto à tentativa de falar de amor é um que se chama “Fossa das Marianas”, em que uma mulher enumera a paixão em dias, pequenos parágrafos nos quais fala da evolução de um sentimento desde a nascente até a morte. É uma forma de texto que lembra muito as mensagens de celular. Mas não me parece que tenha sido de propósito. Acredito que seja uma natural influência, contagiados que estamos, todos, pelo “zap”.
Escrever o amor na atualidade não é tarefa fácil.
Penso em Clarice Lispector agora: quando não se consegue definir uma coisa – um livro, um sentimento, talvez – o melhor é chamá-la assim: “objeto gritante”. Até porque nada progride, nem o texto nem a literatura (nem o amor?), sem fugir a definições óbvias…
Gostei desses textos da Myriam porque ela tenta falar do amor de uma forma “gritante”, escapando às fórmulas já cansadas. Imaginei como seria se eu conseguisse transformar algumas conversas em texto. Seria interessante. Um interessante exercício literário. Depois eu conto se deu certo!
Palavras são para comer
Myriam Campello
Editora Oito e Meio