A vida é um palco onde nós somos os atores. Confira mais uma indicação de livro na coluna Papo de Livro com a escritora e jornalista Claudia Nina!
Ninguém precisa viver grandes dramas ou tragédias pessoais para saber que a casa onde pisamos diariamente poderia com facilidade se transformar em palco. Tente gravar um dia inteiro e depois edite as melhores cenas – uma discussão com um filho ou um momento de forte emoção; aquela conversa séria com a mãe ou um momento em que a filha decide ser pop star…
Pensem ainda no texto, que talvez nem precise ser trabalhado; há dias em que a fala já nasce pronta para a encenação, só falta a plateia.
Somos seres dramáticos por excelência. Uma lida em Shakespeare mostra que as melhores cenas não são as da macro-história, mas sim as da micro-história dos quartos, cozinhas, estábulos, alcovas… O pensamento pode ser um bom exercício para se criar algo em torno da própria vivência diária: quem busca inspiração não precisa ir muito distante de si mesmo – olhar ao redor é o primeiro passo.
Outro dia estava vendo um filme espanhol (O autor) em que um aspirante a escritor não conseguia escrever um texto com “verdade”. Ele já estava há vários anos em uma oficina literária e não conseguia avançar. Por fim, decide observar secretamente a vida dos vizinhos, escuta e apreende. O final é surpreendente.
Pensei nisso tudo com a leitura recente de um romance que propõe esse tipo de reflexão, entre outras, a partir das histórias que apresenta: O grito, do Godofredo de Oliveira Neto. São narrativas diversas e teatrais dentro de um espaço onde cabe o mundo: um quarto e sua luminosidade. Está pronto o espetáculo. O pensamento de uma ex-atriz e um jovem diretor é a caixa acústica que reverbera as falas e os gestos.
Título: Grito
Autor: Godofredo de Oliveira Neto
Editora: Record
Páginas: 160
Adicione: Skoob / Goodreads
“São narrativas diversas e teatrais dentro de um espaço onde cabe o mundo… Está pronto o espetáculo.”
No meio da trama, outras vozes se fazem ouvir como a de Valéry, Goethe, Shakespeare, Machado. Texto sobre texto, palavra sobre palavra. Onde termina a vida e começa o teatro? Não se sabe. Ninguém sabe. Eis a mágica do palco e da capacidade de identificação entre o que se passa no teatro e o que a vida encena. “Tem um holofote igualzinho a esse aí em cima do armário. As tiradas mais retóricas são ditas debaixo da luz. Fausto caminha de um lado para o outro no pequeno palco. Ele pretende instalar uma iluminação profissional no seu apartamento, apesar da exiguidade da sala. A voz do Fausto é extraordinária, algo fundamental para o teatro. A linguagem dramática exige certas qualidades. Ele fica lindo quando a luz do holofote incide sobre seu rosto.”
Voltar ao cenário da rotina e tirar de lá a luz, o gesto, a fala, os personagens. Sempre acho que existem ideias de oficina de escrita dentro da própria vida, e um passeio pelos nossos quintais, os palcos disfarçados, pode trazer muita ideia boa nos mais variados gêneros, da poesia ao teatro. Que tal experimentar?
Por Claudia Nina
Claudia Nina é jornalista e escritora, autora, entre outros, de Paisagem de porcelana (Rocco).