O ano do vaga-lume

O autor discorre sobre a vida e a morte, a partir de suas lembranças de observar o voo e a luz do vaga-lume, tanto na sua infância quanto na de seus filhos.

Redação | 7 de Maio de 2019 às 16:00

fergregory/iStock -

O vaga-lume e uma história inspiradora com essa criatura misteriosa, que ilumina o passado de um homem e torna ainda mais doce o seu presente.

Julho

Cai o crepúsculo. No quintal da nossa casa na zona rural da Carolina do Norte, meus filhos e eu, descalços, caçamos os vaga-lumes que voam no capim logo abaixo do pé de noz-pecã. Com redes de caçar borboletas, nos lançamos sobre um inseto e o seguimos, tendo como pano de fundo o gado que rumina no pasto ao lado. A criatura luminosa despenca e desliza como uma partícula de poeira num raio de sol e, quando a sua luz se apaga, nos agachamos para seguir sua silhueta contra o céu arroxeado.

Capturo o vaga-lume e o entrego a Zoe, minha filha de 2 anos, que junta as mãos em torno dele e deixa uma fenda para espiar com um olho só. Quando o inseto acende a luz em suas mãos fechadas, ela me olha extasiada e o entrega a Stillman, o irmão de 3 anos. É a vez dele de viver esse momento mágico e misterioso.

Talvez seja o ar melífluo do verão ou simplesmente uma daquelas sensações que pais e mães têm ao imaginar que é disso que se lembrarão décadas depois quando estiverem recordando as cenas de “quando as crianças eram pequenas”.

Seja o que for, entregar um vaga-lume para meus filhos passa a ter, de repente, um peso enorme.

Agosto

Estamos noutro sítio, no norte do estado de Nova York, onde meus pais me deram vaga-lumes para segurar muito tempo atrás. O verão está terminando e o frio já é excessivo para esses bichinhos luminosos, mas há muito mais a fazer. Caminhamos, cavalgamos, pegamos rãs e brincamos no quintal.

Sempre foi assim. Meus pais, ambos com quase 70 anos, criaram seis filhos. Meu pai dava aulas de inglês na escola secundária e cuidava da pequena fazenda. Ali todos os equipamentos eram do século 19 – todos puxados a cavalo. Como se não bastasse, meus pais tinham cargos de liderança em sua igreja. Acolhiam órfãos, crianças pobres do programa de férias rurais, parentes, vagabundos, idosos, patifes e desgarrados. Mas sempre tinham tempo para nós.

Conosco subiam montanhas, desciam corredeiras, e até nos ensinaram a dar cambalhota. Fogueiras no quintal no verão, jogos de tabuleiro no inverno. O jantar era hora de charadas e adivinhações. Papai lia para todos nas noites de inverno, mesmo quando alguns de nós já éramos adolescentes. Não consigo me lembrar de nenhuma vez em que ele tenha chegado em casa, dito “estou exausto” e se sentado para descansar. Essas palavras não tinham lugar no dicionário dos meus pais.

Hoje não é diferente. Papai atrela à charrete seu velho Duke, para nos levar num passeio pela estrada campestre. Papai comprou Duke dos amish, anos atrás. Idoso demais para outras funções, o cavalo ainda gosta de puxar a charrete; e, embora corcunda e torto, trota muito bem. A um quilômetro de casa, olhamos para trás e vemos na estrada um pontinho azul que se aproxima aos poucos.

Ar sonhador

Um instante depois, a figura cresce: é minha mãe que, pedalando com força, num piscar de olhos nos alcança, exibindo um grande sorriso, e as crianças dão vivas.

Depois do jantar, nos amontoamos numa carroça de feno; papai a atrela ao trator e nos leva até um laguinho onde pescaremos sob a chuva que cai. Quando terminamos, o sol já se pôs e mal conseguimos ver os bezerros no pasto em torno do lago por causa do nevoeiro que se adensa.

Sento-me ao lado de mamãe na carroça para voltar para casa, com meus filhos no colo. Minha mãe fita a neblina com um ar sonhador.

– Lembra de como você brincava na neblina? – pergunta.

– Claro. O tempo todo.

– Ah, mas eu estava pensando numa vez específica. Era uma noite como esta. Vimos o nevoeiro chegar e dissemos: “Vamos! Vamos até o prado brincar.” Eu me lembro que brincamos de esconde-esconde, chamando uns aos outros no meio da cerração.

Não me lembro dessa noite, mas não importa. Como um auxílio visual, tenho a cena maravilhosa à minha frente: uma lua crescente amarela brilha alta acima dos novelos de bruma; bolsões de capim baixo e lustroso do pasto onde a chuva recém-caída ainda se infiltra; e também o cheiro de terra, feno e vida nova. Penso em meus pais, provavelmente com 20 e poucos anos, largando tudo para brincar na neblina com os filhos. E agora, décadas depois, aqui está mamãe recordando essa alegria e penso: Naquela noite enevoada há tanto tempo, será que esse sentimento a invadiu, saber que era a isso que estaria se referindo quando olhasse para trás e dissesse “quando as crianças eram pequenas”?

Janeiro

Dou a meus pais meu regulamentar telefonema noturno de domingo. Como sempre, o inverno é brando na Carolina do Norte, mas eles tiveram um período de frio como os de antigamente, com temperaturas abaixo de zero e vento gelado. Papai me conta que Duke morreu. Normalmente, estaria no estábulo quando papai saísse para cumprir suas tarefas, mas numa noite gelada não estava lá. Sob as estrelinhas miúdas, papai percorreu o pasto chamando seu velho cavalo e o encontrou estendido no riacho que congelara. Provavelmente havia escorregado no gelo e sucumbido ao frio. Consigo ouvir na voz de papai a culpa e a saudade ao me dizer que não substituirá Duke.

Isso me faz pensar. É parte de um padrão maior, difícil de perceber a não ser quando se está a distância. A fazenda não para de encolher: não há mais gado de corte, laticínios, nem porcos, são menos cavalos, a horta é menor. Meus pais falam em diminuir o ritmo. Bem, até agora é quase só conversa. Com certeza não consigo imaginar isso. E esse é um problema – para mim. Eles vão diminuir o ritmo, e parte da minha obrigação de adulto é compreender isso.

Julho

As crianças estão um ano mais velhas e o quintal se encontra novamente em festa com a fria luz verde dos vaga-lumes. Pego o primeiro da estação e passo para um extasiado Stillman. Não há outro lugar onde eu preferisse estar, mais nada que preferisse fazer.

Será que minha infância foi mesmo tão idílica quanto penso? Talvez não.

Mas o amor excede o resto, e, com alguma sorte, acontecerá o mesmo com meus filhos.

Em certo momento da vida, fiz esperançosas, embora frustradas, incursões pelo budismo, mas não consegui me identificar com sua doutrina principal – o desapego. Consigo entender que desapego esclarecido em relação a meus pais me faria bem quando eles começam seu inevitável declínio. Mas não tem jeito, me agarro: aos meus pais, à minha mulher, aos meus filhos, à emoção e à magia deste mundo, e calculo que a dor da perda valerá a pena, comparada à alegria do apego. Ainda assim, uma das imagens adoráveis do Buda se fixou na minha cabeça: ele compara a reencarnação à passagem da chama de uma vela a outra; a fonte da vida é a mesma no decorrer das gerações, mas a chama não é mais a mesma depois que passa de uma vela a outra.

Finalmente entendo que é isso que faço aqui quando a luzinha pura de cada vaga-lume passa da minha mão para a dos meus filhos pequenos: simplesmente transfiro a chama que, por pouco tempo, fica em meu poder.

Por Derek Burnett

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