Em dias sombrios, cultivar uma horta pode significar a promessa de uma vida nova. Confira o texto da escritora Sara B. Franklin e emocione-se!
Redação | 1 de Julho de 2020 às 01:01
Em 14 de março deste ano, sábado, dia seguinte ao fechamento das escolas públicas e da creche de nossos gêmeos de 3 anos na cidade onde moramos no vale do Hudson, estado de Nova York, por causa do surto da Covid-19, mandei as crianças ficarem com a babá pela última vez, frenética durante algumas horas para terminar algumas coisas antes de me entregar à maternidade o dia inteiro, todos os dias, no futuro próximo.
Havia pilhas de roupa para lavar, uma lista de compras que precisava ser feita com urgência. Mas me senti atraída por minha horta, ainda embaixo da cobertura morta do sono de inverno. Cutucando aqui e ali, vi os primeiros sinais de vida: o ruibarbo tirara as onduladas coroas fúcsias da terra úmida, e os minúsculos babadinhos da urtiga tinham vários centímetros de altura no canto espaçoso e malcuidado dos fundos. A cebolinha também brotara de repente com o calor dos dias anteriores. Parecia cedo demais, pensei, percorrendo na mente todos os meus anos de plantio. Mas esse foi o inverno que nunca houve, o gelo profundo que nunca chegou. A inquietação estava conosco havia meses. Os gansos voltaram cedo para casa, as tartarugas já descansavam nos troncos, as rãs no laguinho dos castores na primeira semana de março: um mês inteiro antes.
Eu não estava pronta, mas a terra, sim; as plantas me diziam isso. Portanto, peguei minha caixa de sementes na prateleira da cozinha. Lá atrás, no galpãozinho, tirei uma enxada de ponta afiada de trás de uma confusão de bicicletas e cadeiras de jardim. Na horta, me ajoelhei junto a um canteiro, afastei as aparas amarronzadas do último corte de grama do outono, fiz duas valas rasas e pus as sementes no chão: as de alface, minúsculas e amendoadas, e as de couve – crespa e lisa –, como sementes de papoula cor de vinho. Talvez fosse cedo demais, pensei novamente enquanto espalhava os arautos da vida em seu lugar, mas vale tentar. Agora, qualquer coisa que traga esperança vale tentar.
Eu deveria saber. Já passara por isso em outra época, outra vida, ao que parece.
Na manhã seguinte ao último suspiro de minha mãe em 8 de março de 2008, desci a escada do lar de minha infância na luz fraca do fim do inverno. Estava vazia, exausta, perplexa e totalmente sem chão. Tinha 21 anos. Antes do café e sem pensar, estendi a mão para um pacote de sementes; eu encomendara o suficiente para uma estação inteira quando me mudei de repente para ajudar minha mãe – que finalmente desistira da batalha contra o câncer de pâncreas – a morrer, planejando reviver a horta de que ela cuidava quando eu era menina.
A horta ficara lá, abandonada, nos últimos anos, e estava coberta de mato. Vislumbrei o prazer catártico de arrancar todas aquelas plantas invasoras, de misturar esterco curtido na terra, empurrando de volta ao chão toda a minha fúria e confusão como se quisesse expurgá-las de mim.
Naquela manhã após sua morte, tantos meses antes do que eu previra, passei pela porta de tela quebrada e desci os degraus dos fundos, onde colocara o material de jardinagem. Pus alguns punhados de terra fria e argilosa numa bandeja plástica para mudas e a levei de volta para dentro. Gentilmente, empurrei uma semente de ervilha enrugada, verde-acinzentada, em cada compartimento e joguei um pouquinho de terra por cima. Levei a bandeja à cozinha, respinguei a coisa toda com água ao lado da torneira e a coloquei no parapeito ensolarado de uma janela.
O impulso viera de algum lugar abaixo da consciência, uma aposta desesperada para catalisar vida nova na esteira imediata da morte. O tempo ficara paralisado naquelas últimas semanas, quando passamos dias ociosos e torturantes à cabeceira de minha mãe, esperando que a morte lhe chegasse e também desesperados para mantê-la a distância. Ao empurrar sementes na terra, senti que chamava os espíritos do tempo e lhes implorava que me levassem de volta à sua companhia: por favor, me permitam retornar à vida. Estou vazia, mas ainda não acabei.
Agora, doze anos depois, parece que não consigo largar minha horta. Algo na cena me faz lembrar muito aqueles dias em que esperávamos a morte de minha mãe – só a família mais chegada, ninguém entrando, ninguém saindo. O tempo ficou plúmbeo na época, como se nadasse em óleo, distorcido e pesado. Agora, também, todos nós prendemos a respiração à espera da próxima contagem de mortos, a confirmação mais recente da paralisação invasora e do isolamento pendente.
Passo os dedos sem objetivo pela tela do celular enquanto as crianças empilham tijolos quebrados no quintal, ou assistem demais à TV, ou choramingam por minha atenção. Mal as escuto. Deveria estar presente com meus filhos, quero estar, ralho comigo. Mas estou pendurada na borda do tempo, esperando que algo definitivo aconteça. Nada acontece, é claro. Só a expansão do medo e dos regulamentos, uma massa crescente de incerteza nervosa que pegou todos nós em suas garras profundas.
Na horta, em outro dia quente demais para a estação, endireito o corpo um momento para aliviar a dor nas costas. Estou enfiando o ancinho no solo frio a fim de revirá-lo já faz uma hora. Meus dedos estão cobertos de terra, dois nós rachados e sangrando. Adoro a dorzinha. Agora, a horta é o único lugar onde consigo encontrar uma poça de imobilidade, consigo canalizar algo da realidade. Meus filhos correm pelo quintal brandindo varas e equipamento de construção de plástico, repentinamente selvagens com a dissolução da rotina e da socialização. Os cães estão contentíssimos e surpresos por ficarmos em casa o dia todo, e pulam, puxam um brinquedo de borracha para cá e para lá entre si e rosnam torrencialmente.
Agacho-me de novo, arranco o mato temporão, enfio a pá na cobertura e viro as minhocas na pilha de compostagem. Preciso que as coisas aqui, nesta horta, se apressem e se mostrem para me dizer que ainda estamos avançando, seja de que modo for, nessa súbita suspensão do tempo. Preciso acreditar que é uma pausa, não uma suspensão. Vamos, parece que digo a todos, vamos lá! Temos de provar nossa coragem. Ainda não estamos prontos para partir.
Sara B. Franklin é escritora e professora de estudos culinários e história oral da Escola Gallatin da Universidade de Nova York e da Penitenciária Wallkill, no Programa Educacional Prisional da mesma universidade. Mora em Kingston, Nova York, com a família.