O sol poente projetava a silhueta imensa do trem de carga. Carregado de combustível, água e areia, a locomotiva pesava 186 toneladas – pouco menos que um
Redação | 1 de Abril de 2020 às 01:01
O sol poente projetava a silhueta imensa do trem de carga. Carregado de combustível, água e areia, a locomotiva pesava 186 toneladas – pouco menos que um jato 747. Mesmo em ponto morto, o condutor Robert Mohr sentia a potência do motor a diesel ribombar pelo chão.
Mohr, de 49 anos, passou os olhos pelos 96 vagões atrás dele e, por um momento, recordou por que sempre quis ser condutor. Para ele, havia beleza na maquinaria enorme e no controle daquela potência tremenda.
Eram 7 horas da manhã de 12 de maio de 1998. Mohr já examinara um despacho que listava os materiais perigosos a bordo do trem. “Estamos levando gás”, disse ele ao mecânico Rod Lindley na cabine.
A presença de gás propano líquido exigia muita precaução ao frear o trem de 6.200 toneladas. Com gás explosivo a bordo, um descarrilamento seria desastroso. O restante da carga era, principalmente, de carros novos, peças automotivas e carvão.
Depois de uma última inspeção externa, Mohr pulou a bordo. Lentamente, o trem saiu do terminal de Decatur, no estado de Illinois. Seguiam para leste, rumo ao sol, que prometia um dia lindo para a viagem de 277 quilômetros até a cidade de Peru, no estado de Indiana.
Por volta do meio-dia, Tila Marshall preparou-se para cuidar do jardim. Com 34 anos e mãe de quatro filhos, ela planejava adornar com flores a frente de sua casa em Lafayette, no estado de Indiana. Era um dia lindo para isso, pensou, olhando as casas no outro lado da rua. A uns 50 metros, pouco visíveis no meio do capim alto que oscilava, os trilhos do trem cintilavam ao sol.
Tila começou a trabalhar num canteiro. Sentada a seu lado, passando alegremente as mãos na terra, estava Emily, sua filha de 1 ano e 7 meses. Por algum tempo, ela se virava para olhar Emily, que brincava ali perto. Mas, por fim, Tila ficou totalmente absorta no trabalho.
Confortável dentro da cabine da locomotiva, Robert Mohr sorriu quando Rod Lindley ligou o aquecedor do painel. O mecânico preparava o almoço do jeito que costumava fazer: usando o aquecedor como fogão. “Costeleta de porco”, anunciou Lindley com orgulho, posicionando cuidadosamente algo embrulhado em papel-alumínio. “Eu mesmo defumei.”
Somados, Mohr e Lindley tinham 50 anos de experiência ferroviária e muito em comum. Ambos eram apaixonados por caça e pesca e gostavam de trocar histórias de aventuras ao ar livre.
Gostavam ainda mais de falar da família. Enquanto o rádio estalava com informações dos despachantes, eles riam das dificuldades na criação dos filhos.
Mohr e Lindley se aproximaram de Lafayette por volta das 13h45 e desaceleraram o trem para o limite de 40 km/h. Lindley ativou as luzes piscantes e o sino de aviso. Os dois tinham passado centenas de vezes pela cidade e tomavam muito cuidado ao fazer a primeira curva. À frente, em apenas 5 quilômetros de trilhos, havia nada menos que 24 travessias de ruas.
Quando o trem terminou a curva, Lindley notou um pequeno ponto acastanhado no trilho direito uns 150 metros à frente. Achou que fosse um
cachorro. Embora fosse contra as regras fazer isso em Lafayette, ele começou a tocar de leve o apito. “Vamos, cachorrinho, saia daí”, insistia.
O apito do trem despertou Tila de seu devaneio no jardim. Que estranho, pensou. Eles não costumam tocar o apito na cidade.
Ela deu uma olhada para procurar a filha, e seu coração disparou. Emily não estava em lugar nenhum.
Enquanto Lindley operava os controles, Mohr se levantou a fim de olhar o que estava nos trilhos. Não era raro que tais objetos não passassem de um monte de trapos ou detritos. As emergências reais eram bem menos comuns, embora Mohr tivesse sofrido alguns acidentes em seus 23 anos na ferrovia.
Agora, com o trem a 100 metros do objeto nos trilhos, Mohr olhou com atenção. Então, levou um choque.
Tila Marshall correu até os fundos da casa. Sabia que Emily adorava brincar com o irmão de 11 anos: a menina corria até o quintal enquanto Zachary atravessava a casa para encontrá-la, provocando guinchos de prazer. Tila gritou: “Emily! Emily, querida, você está aí atrás?”
Não havia sinal da menininha. Tila correu até a frente da casa, onde agora estava Zachary. “Sua irmã está com você?”, perguntou ao filho.
“Não”, respondeu ele, que correu para procurá-la dentro de casa.
Lindley tinha de tomar uma decisão urgente. Aplicar força total nos freios de emergência com metade do trem ainda na curva provocaria um descarrilamento. Mas a realidade terrível da situação não lhe dava escolha. Ele precisava arriscar a parada da emergência.
O trem tremeu, e as rodas guincharam em protesto. Lindley tocou o apito e, impotente, observou o trem continuar avançando sobre o bebê. Ele e Mohr sentiram sacolejos sucessivos conforme os vagões freavam da frente
para trás, cada um batendo no vagão à frente.
Com os olhos bem abertos e colados na figurinha à frente, Lindley só podia rezar.
Tila estava incapaz de se concentrar, com as pernas bambas, tremendo incontrolavelmente. Tudo lhe parecia irreal. Uma onda de náusea tomou conta dela. Mas era como se Tila estivesse presa num corredor, incapaz de se mexer. Zachary estava a seu lado, chorando: “Mãe, estou com medo.”
Enquanto o trem avançava, Robert Mohr agiu por instinto. Escancarou a porta esquerda da cabine e pisou no estribo estreito. Correu para a frente da locomotiva e atravessou para o lado direito. Então, desceu para a parte inferior do estribo logo atrás do limpa-trilhos.
A criança estava a apenas 40 metros. Freneticamente, Mohr pensou no que fazer. A essa velocidade, ainda uns 30 km/h, um trem daquele tamanho precisaria de mais 150 metros até parar. Não havia como detê-lo a tempo. Ele fez uma careta ao imaginar o limpa-trilhos atingindo a menininha.
Com menos de dez segundos restantes, o bebê rolou para fora dos trilhos e caiu na parte externa dos dormentes. Se ficasse abaixada, talvez a borda direita do limpa-trilhos passasse por cima dela sem machucar. Mas aí ela levantou as costas, preparando-se para ficar em pé. “Não, não, bebê, deite-se!”, gritou Mohr.
Com a ponta do pé esquerdo no estribo e a mão esquerda segurando o corrimão, Mohr se esticou o máximo possível. Sabia que só podia tentar uma vez.
A criança ainda tentava se levantar e agora estava diretamente no caminho do limpa-trilhos.
Mohr se esticou o mais que pôde e esticou para fora a perna direita. “Vamos, por favor”, murmurou entre dentes, “só mais alguns centímetros…”
De repente, a menininha estava junto dele. Ele balançou a perna e a afastou com o pé. Viu o bebê bater a cabeça numas pedras e sair rolando quando o trem passou. Teria sido jogada para longe da locomotiva?
Mohr pulou do trem em movimento e correu até a criança. Ela chorava junto aos trilhos, com sangue escorrendo de um corte sob o cabelo.
Tila estava em pé na frente de casa, agarrando a mão do filho e fitando as pessoas que corriam rumo aos trilhos. Tentava gritar e pedir ajuda, mas só
conseguia ofegar coisas ininteligíveis.
Mohr se ajoelhou ao lado da criança. “Mamãe! Mamãe!”, gritou a menininha. Um alívio extasiado inundou Mohr.
Segurando com cuidado sua cabeça, Mohr a levantou do chão. “Tudo bem, querida”, sussurrou. “Vamos procurar a mamãe.”
Só então Mohr notou que o trem parara e que havia veículos com luzes vermelhas piscando junto aos trilhos. Um vizinho, ao ver o acidente se desenrolar, ligara para o serviço de emergência.
Com o bebê no colo, Mohr começou a andar e foi cercado pela polícia e por uma multidão crescente de pessoas. Os bombeiros chegaram, pegaram a bebê e a entregaram aos paramédicos para levá-la ao hospital.
Tila Marshall ergueu os olhos e viu policiais se aproximando de seu jardim. Sua mente girou de terror. “Não ousem dizer que foi minha filhinha!”, gritou.
Um detetive da polícia levantou a mão. “Senhora, senhora, acalme-se. O
bebê vai ficar bem. Só temos de descobrir quem é a mãe.”
Tila logo percebeu que a descrição da criança combinava com Emily. Ela finalmente entendeu a notícia de que sua filha estava a salvo, a caminho do hospital, e desmoronou, chorando, nos braços do detetive.
Mohr falou com a polícia e com funcionários da ferrovia e também começou a tremer. Ele disse a si mesmo que ainda tinha trabalho a fazer e começou a percorrer a extensão do trem para verificar os vagões.
“Vá se sentar na cabine”, aconselhou um funcionário da ferrovia. “Eu faço a inspeção.”
Enquanto Mohr descansava no trem, as emoções contidas subiram à superfície. Tudo tinha se desenrolado tão depressa que a realidade do que fizera só o atingia agora.
Em minutos, Lindley estava a seu lado e retomava os controles. Eles se entreolharam, a expressão de alívio e gratidão mais eloquente do que as palavras. O macacão de Mohr ainda estava respingado de sangue. O trem se afastou lentamente de Lafayette.
Naquela noite, quando Robert Mohr chegou em casa, a família estava na varanda da frente, aplaudindo. Tinham visto na televisão a notícia de seu heroísmo. Para alívio de Mohr, ele foi informado de que a menininha só sofrera cortes e hematomas. Ficaria bem.
Uma semana depois, Mohr desceu de seu carro diante da casa de Tila Marshall. Quando foi apresentada ao homem que salvara sua filha, ela o abraçou com força.
Mohr pegou a menininha no colo e falou: “Oi, Emily.”