No Mês dos Pais, o escritor Taylor Brown fala sobre aquele que lhe ensinou o amor pelas motos e pela liberdade: o seu pai!
Quando menino em St. Petersburg, na Flórida, meu pai entregava jornais, primeiro de bicicleta, depois de motoneta, quem sabe descobrindo nessa época seu amor às duas rodas. Eu o imagino adolescente em sua Vespa, o céu azul com nuvens sangrentas cor de ferrugem, roncando e fumegando pelas pontes do Condado de Pinellas – os jornais da noite, quentinhos da gráfica, enrolados como pães frescos na sacola de couro, a lanterna traseira um rubi vermelho na escuridão que cai.
Cinquenta e seis anos depois, no outono de 2017, saí de casa em Wilmington, na Carolina do Norte, montado na Blitzen, minha Harley-Davidson Sportster 1989 – moto que papai e eu construímos juntos –, rumo a Nova Orleans. Minha rota me levaria pela velha estrada costeira, a US17; eu passaria a noite na casa de meus pais ao sul de Savannah, onde cresci, e depois cruzaria a costa do Golfo até meu destino. Era minha viagem solo mais longa até então.
Eu nem saíra da cidade ainda quando a moto apresentou um problema, uma pequena falha na ignição. Liguei para o velho. Geralmente conversávamos algumas vezes por semana. Eu andava de carona em sua Harley desde o ensino fundamental. Na adolescência, caçávamos estradas vicinais do sul da Geórgia para andar em nossas motos de trilha. Agora, eu já nos 30, estávamos nos tornando amigos mais íntimos do que nunca. Trabalhamos lado a lado na Blitzen sem quase nenhuma rusga – façanha nada desprezível quando se conserta uma motocicleta de 30 anos. Além disso, começamos a dividir como nunca o amor pelas motos. Ainda me lembro do brilho de identificação nos olhos dele quando descrevi a sensação da minha primeira viagem longa sozinho.
Nunca esquecerei a primeira vez em que ele me deixou andar em sua valiosa Harley-Davidson Wide Glide, 90ºaniversário. Eu tinha 16 anos e estávamos em estradas vicinais ao sul da divisa com a Flórida. Quando paramos para abastecer, emparelhei com ele, empolgadíssimo, e meu pé escorregou num trecho de cascalho. Quase em câmera lenta, caí com a moto, quase 300 quilos da Milwaukee Iron. Pude ver a dor e a frustração em seu rosto. Mas, em vez de explodir, ele trincou os dentes e controlou as emoções enquanto passava os dedos nos novos arranhões e amassaduras da máquina antes perfeita.
“Acontece nas melhores famílias”, disse ele. É verdade, todo mundo que anda de moto vai cair, mais cedo ou mais tarde. Ainda assim, como é fácil esquecer isso no calor do momento! Não Rick Brown, meu pai. Acredito que foi uma das grandes lições que aprendi com ele: muitas vezes, o caráter nos exige pôr o certo acima do fácil.
Em Wilmington, depois de alguns minutos ao telefone, concluímos que o defeito da Blitzen era só um pedacinho de ferrugem ou sujeira que havia passado pelo filtro de combustível; agora o motor pulsava baixo e firme, como um coração mecânico.
Peguei a estrada.
Em viagens assim, sempre evito as interestaduais, exatamente como ele me ensinou. Há muito mais coisa para ver nas estradas vicinais e nos atalhos. A beira da estrada oferece barraquinhas e lojas de tralhas, pequenas igrejas, restaurantes familiares e postos de gasolina que servem café em copinhos de isopor – o melhor café do mundo quando você acabou de descer da motocicleta encharcado e tremendo de frio.
Para mim, não há nada mais terapêutico do que uma longa viagem pelas estradas pequenas. É como se o vento soprasse aos poucos os ninhos de dúvida e ansiedade que se amontoam dentro da gente. Acho que, na motocicleta, ficamos extremamente vulneráveis. Talvez estejamos mais perto da morte, e isso põe na devida perspectiva as pequenas preocupações da vida cotidiana.
Depois de passar a noite em Charleston, parti cedo na manhã seguinte rumo ao sul, pelos pântanos marrom-esverdeados e pelos rios de água negra, a caminho da Geórgia. Meu velho me encontrou no centro de Savannah. Almoçamos, fomos a uma livraria e nos sentamos num dos bares de hotel acima d’água, observando o tráfego do rio passar. Foi um dia inesperadamente especial. Uma dádiva.
Na noite seguinte, nos sentamos lado a lado junto à bancada da cozinha enquanto planejávamos os próximos trechos da minha viagem. Fiz anotações em cartões enquanto ele passava os dedos pelos atlas gastos de tanto que ele os usara. Eu pegaria muitas das mesmas estradas que ele percorrera no passado, seguindo seu caminho pela costa do Golfo.
Há filhos que querem ser como os pais e filhos que seguem o caminho oposto. Nunca duvidei de qual tipo sou.
Quando passei a perna sobre a Blitzen na manhã seguinte, os cartões com nossas anotações estavam seguros no bolso da frente, num saco plástico para sanduíche a fim de protegê-los dos elementos. Era 16 de outubro, dois dias antes de meu 35-ºaniversário. Numa foto tirada naquela manhã, estou com minha jaqueta de couro preto de segunda mão e a mochila vermelha, e o velho saco à prova d’água de meu pai está amarrado na parte de trás do selim.
O tempo estava nublado. Avancei pelas pontes e passarelas do litoral da Geórgia, onde a água parecia pálida, quase branca através da neblina, serpenteando pela macega escurecida do charco de outono. Desci pela Rodovia 17 por uma série de cidadezinhas, contornando o pântano de Okefenokee e a Floresta Nacional de Osceola, avançando para o litoral noroeste da Flórida.
Ainda tenho os cartões anotados que me dizem as cidades – Folkston, Macclenny, Sanderson, Lake City, Branford – e a lista de verificação de viagem que meu pai me deu, com itens necessários como “Remendo de pneu/bomba”, “Fita isolante” e “charutos/isqueiro/cortador”.
Na hora do almoço, parei em Mayo, na Flórida, onde tirei fotos da sorveteria Udder Delight. Troquei mensagens com meu pai. Ele fora almoçar num restaurante chamado Steffens, perto da divisa Geórgia-Flórida, e me mandou uma foto de uma miniatura de um Ford cupê 1940 numa estante – um modelo como o carro de contrabando de bebidas de meu romance Gods of Howl Mountain, que “pesquisamos” juntos em exposições de carros antigos e festivais Moonshine sobre a época da Lei Seca e dos alambiques ilegais.
Ele me contou que verificara a previsão do tempo e que a chuva mais pesada cairia ao norte da minha rota. Disse que o Condado de Wakulla, na Flórida – meu destino naquela noite –, estava com tempo parcialmente nublado, 31 graus. Não respondi. Já estava de volta à estrada.
Quando recebi o telefonema de minha mãe, estava na pousada de Wakulla Springs, ao sul de Tallahassee. Acabara de chegar. Pelo som da voz dela, soube que algo acontecera, embora houvesse poucos detalhes. Fora um acidente. Um caminhão-betoneira parara na frente do meu pai, que voltava do almoço, na Rodovia 17, logo ao norte da divisa com a Flórida – a mesma estrada que eu percorrera naquela manhã.
Eu estava no aeroporto local, prestes a alugar um carro para voltar para casa, quando mamãe ligou para me dizer que ele se fora. Fiquei parado no estacionamento, fitando o céu. O sol se punha, e o céu estava quase cor de fogo. Pensei em quantas vezes papai viajara para o sul para observar esse mesmo céu se transformar em chamas.
Parti cedo na manhã seguinte no carro alugado e deixei a Blitzen sob uma capa no estacionamento. Minha irmã pegou o voo noturno de São Francisco, e a busquei no aeroporto a caminho de casa. Quando chegamos lá, mamãe tinha um envelope pardo grande rotulado com uma única palavra: SE. Dentro, havia cartas endereçadas a cada um de nós.
Eis um trechinho da minha:
Taylor,
Se estiver lendo isso, algo me aconteceu. Suponho que tenha sido repentino e que não tive oportunidade de me despedir, e sinto muito por isso […].
Sei que é uma época difícil, mas lembre-se dos bons tempos que vivemos juntos – Sun & Fun, Sturgis, motos de trilha, Festival de Moonshine, Blitzen, Austin e muitos outros. Gostei demais, de verdade, de todo o tempo que compartilhamos durante a sua vida (fora uma vez ou outra jogando golfe 🙂 ) […].
O que quero destacar nesta carta é que amo você e me orgulho e sempre me orgulharei…
Desnecessário dizer que é preciso ser um homem especial para escrever cartas assim. Embora evitasse falar disso, a relação dele com o pai fora cheia de dor e dificuldade. Como teria sido fácil para ele seguir o mesmo padrão com os filhos! Em vez disso, ele foi contra a corrente.
Uma semana depois do acidente, um de meus amigos de infância me levou de volta a Wakulla Springs. Eu precisava terminar a viagem.
Na manhã seguinte, parti cedo para Nova Orleans. Parei num posto de gasolina e percebi que a corrente estava solta. Estava sentado no estacionamento tentando soltar o parafuso do eixo com uma chave inglesa velha quando um homem apareceu. Fui com ele até seu Ford enferrujado e ele me entregou um jogo incrível de chaves de soquete com catraca. Ele entrou para tomar o café da manhã na lanchonete, que não tinha janelas para garantir que eu não fugiria com as ferramentas, e me disse que o procurasse ao terminar. Nem sei dizer como isso foi importante para mim.
No dia seguinte, cheguei à casa de minha tia em Nova Orleans, onde meu pai sempre parava nas viagens longas, e a Blitzen enguiçou outravez bem na entrada da garagem, como se a máquina soubesse o significado que tinha para mim terminar a viagem por ele.
Papai pode ter deixado o mundo cedo demais para nós, mas me consolo um pouco por saber que ele preferiria ir cedo a ir tarde demais. Rick Brown gostaria de morrer de botas, e assim foi. Morreu fazendo o que amava, e isso é bastante raro.
Hoje, sou mais vigilante do que nunca na moto. Mas não há lugar onde eu me sinta mais próximo do meu pai. Penso nele todas as vezes que passo a perna sobre o selim. Penso em tudo o que aprendi com ele, na sorte que tenho de ser seu filho.
POR TAYLOR BROWN DA GARDEN & GUN
GARDEN & GUN (JUNHO/JULHO DE 2019), © 2019 TAYLOR BROWN, GARDENANDGUN.COM.