Em 1944, Antoine de Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe, desapareceu. Anos depois, vestígios do que aconteceu parecem solucionar o mistério.
Bem cedo numa manhã de setembro de chuva torrencial, Jean-Claude Bianco, comandante do pesqueiro L’Horizon, lançou sua rede nas águas agitadas do Mediterrâneo ao largo da costa francesa, perto de Marselha. Avançando devagar, começou a descrever um curso amplo e elíptico para leste e depois recuou em direção à ilha de Riou. Após três horas, percorrera o trajeto duas vezes e a imensa rede sulcara o fundo do mar a cerca de 100 metros de profundidade, capturando peixes e tudo o mais em seu caminho.
Içando o arrastão a bordo, a tripulação começou a separar a pesca. O imediato Habib Benamor estava prestes a descartar um bloco cinza-escuro de sedimento calcificado quando distinguiu um diminuto lampejo prateado.
Intrigado, esmagou a crosta com um martelo e liberou o objeto em seu interior – uma pulseira de identificação. Estava marcada e escurecida, mas o metal ainda cintilava numa das extremidades.
“Tiramos a sorte grande”, exultou Bianco naquele dia de 1998. Mas não era tão simples.
Benamor mostrou seu achado ao capitão. Bianco esfregou a pulseira com esponja e detergente. As letras começaram a aparecer, todas maiúsculas: ANTOINE DE SAINT-EXUPÉRY e, em seguida, (CONSUELO).
Com um sobressalto de reconhecimento, Bianco compreendeu que o arrastão do L’Horizon apanhara a chave do maior enigma literário do século 20: o desaparecimento, meio século antes, de Antoine de Saint-Exupéry, um dos mais queridos escritores da França, autor e ilustrador do imortal livro infantil O Pequeno Príncipe.
“Tiramos a sorte grande”, exultou Bianco naquele dia de 1998. Mas não era tão simples assim.
O aristocrático Antoine de Saint-Exupéry nasceu com o século. Tinha 12 anos quando descobriu os aviões da pequena pista de pouso rural de Ambérieu, perto de Lyon. O garoto atormentou um piloto para que o levasse lá para cima numa daquelas máquinas frágeis e barulhentas, e foi fulminado pela alegria de voar.
Cadete da aviação militar aos 21 anos, qualificou-se como piloto e transferiu-se, aos 26, para a Aéropostale, serviço de correio aéreo para Casablanca e Dakar, nas então colônias francesas de Marrocos e Senegal, na África. Um ano depois, foi designado chefe da estação e ponto de abastecimento de Cabo Juby, no deserto do sul de Marrocos.
Administrando a estação, fornecendo informações sobre as rotas de correio e examinando o deserto a fim de resgatar pilotos que haviam caído, ele mergulhou na mais excitante aventura da época. Em seguida, foi designado para Buenos Aires, na Argentina, a fim de inaugurar uma nova rota para a Patagônia.
Para o público admirador, que lia relatos jornalísticos das corajosas proezas por trás da entrega de suas cartas, as rotas de correio dos anos 1920 e 1930 eram como os modernos voos espaciais, e os pilotos eram heróis pioneiros.
Inspirado por suas experiências na Aéropostale, Saint-Exupéry lançou seus primeiros romances, Correio do sul e Voo noturno, que o tornaram famoso.
O estouro da 2ª Guerra Mundial
Quando a 2ª Guerra Mundial eclodiu, desastres e hospitalizações haviam deixado em Saint-Exupéry sequelas de ferimentos e dores. Entretanto, aos 39 anos, considerado velho demais para o combate aéreo, insistiu em juntar-se ao esforço de guerra, voando em perigosas missões fotográficas no esquadrão 2/33 de reconhecimento da Força Aérea Francesa. Com a derrota da França, foi para os Estados Unidos, onde começou a escrever e a pintar as ilustrações em aquarela para O Pequeno Príncipe.
A clássica fantasia tornou-se um dos maiores sucessos da literatura, com mais de 25 milhões de livros vendidos em cerca de 100 idiomas. O livro conta a história de um menino, único habitante do asteroide B 612, que se apaixona por uma linda rosa, briga com ela e parte para explorar a vida em outros planetas. O garoto recebe a sabedoria da vida de uma raposa: “Só se vê bem com o coração.”
Fantasioso e encantador em certo nível, o livro é autobiográfico em outro. A rosa é sua mulher, Consuelo, com quem tinha um relacionamento tempestuoso, e o príncipe questionador é ele mesmo, refletindo sobre a vida enquanto voa entre as estrelas.
Em 1943, Saint-Exupéry voltou ao esquadrão 2/33 de reconhecimento da Força Aérea Francesa no Norte da África e depois se deslocou com ele para uma nova base na Córsega.
Equipado e apoiado pelos Estados Unidos, era um esquadrão de elite formado por jovens ases da aviação. Aos 44 anos, Antoine de Saint-Exupéry estava velho e pesado demais para o veloz, ultramoderno e fisicamente exigente Lockheed P-38; um bimotor com talento de puro-sangue chamado “Lightning”, que o esquadrão pilotava. Entretanto, valeu-se da fama e dos contatos políticos para garantir uma designação para pelo menos cinco missões.
Na segunda, cometeu um erro durante uma aterrissagem, provocando graves danos ao avião, e foi afastado. Foram tempos difíceis para Saint-Exupéry. O relacionamento com a mulher era tenso, tinha problemas financeiros e sentia-se deprimido e humilhado por causa do afastamento. Partidários do general Charles de Gaulle, o líder de guerra francês, repreenderam-no por ter ido para os Estados Unidos em vez de se reunir ao governo no exílio, em Londres.
O aviador veterano apresentava indícios de pensamentos suicidas. “Sou completamente indiferente à ideia de morte”, escreveu a um amigo, e contou a seus companheiros pilotos que sua vida terminaria no mar. Aproveitando-se de sua influência, forçou um caminho de volta à lista dos ativos. Em 31 de jullho de 1944, decolou do campo de pouso de Poretta, na Córsega, para uma missão de mapeamento sobre a França oriental, próximo à fronteira da Suíça, em um P-38 F5B da série J. Nunca voltou.
O mistério de Antoine de Saint-Exupéry
O que acontecera com ele? Diferentes teorias circularam nos 60 anos seguintes, mas Saint-Exupéry, a personalidade literária, aos poucos foi se transformando, para os franceses, no Saint-Exupéry herói de guerra: o piloto corajoso e solitário, lutando para libertar seu país.
Em 1993, o Banco Central francês lançou uma nota de 50 francos que exibia um retrato do piloto, ao lado de sua ilustração do Pequeno Príncipe. Os franceses, e sobretudo a família do aviador, gostavam de pensar em seu desaparecimento nos termos sonhadores expressos pelo Pequeno Príncipe quase no fim do livro:
“Tu, porém, terás estrelas como ninguém nunca as teve… Quando olhares o céu de noite, eu estarei habitando uma delas, e de lá estarei rindo; então será, para ti, como se todas as estrelas rissem!”
Na manhã seguinte à descoberta da pulseira, Bianco a levou para Henri-Germain Delauze, fundador e presidente da Comex, empresa de mergulho industrial de Marselha. Delauze, engenheiro e explorador de naufrágios, vislumbrou a mais prestigiosa de todas as descobertas: o avião de Antoine de Saint-Exupéry.
Mantendo a pulseira em segurança, levou seu barco de pesquisa, o Minibex, para a área em que o L’Horizon pescara e começou a inspecioná-la com o equipamento mais sofisticado disponível. A busca prosseguiu por duas semanas, por mais de 100 km² no leito do mar, mas não havia vestígios do avião.
As notícias logo se espalharam e, no fim de outubro, Hervé Vaudoit, do jornal marselhês La Provence, publicou um artigo de primeira página anunciando a descoberta da pulseira de Saint-Exupéry.
Mas onde estava o avião? Entra em cena Luc Vanrell. Mergulhador profissional, dono de uma loja e de uma escola de mergulho em Marselha, lembrou-se de que, em 1982, havia fotografado uma área com escombros metálicos perto de Riou. Enviara as fotos para especialistas na França e na Europa, mas ninguém identificara os destroços. Agora Vanrell se dava conta de que podia ter descoberto algo importante.
Voltou ao local e tirou mais fotografias, que dessa vez enviou por e-mail a grupos veteranos da Força Aérea dos Estados Unidos. Eles entraram em contato com Jack Curtis, um velho piloto de P-38 do 367º Esquadrão de Combate.
Por dois anos, munido do incentivo de Curtis e de uma pilha de documentos técnicos sobre o P-38, Vanrell mergulhou diversas vezes em “sua” área de destroços, fotografando os restos enferrujados e cobertos de crostas. Tornou-se um perito em identificação submarina.
Era um trabalho lento, frio, meticuloso, e a colheita era magra, pois o avião explodira com o impacto, espalhando seus fragmentos por uma área imensa.
Em maio de 2000, ele declarou oficialmente sua descoberta ao DRASSM, o departamento de arqueologia submarina do Ministério da Cultura, sediado em Marselha. No dia seguinte, encontrou-se com Bianco e Delauze para contar seu segredo: todas as peças que encontrara correspondiam a um P-38 F-5B da série J. Quatro deles haviam afundado e três já haviam sido identificados. Aquele, portanto, tinha de ser o avião de Saint-Exupéry.
A única forma de validar essa hipótese era recuperar as peças e procurar os números de série. No entanto, era ilegal retirar artefatos do fundo do mar. Alarmada com a pilhagem de destroços antigos por mergulhadores amadores, a França aprovara leis rígidas protegendo a herança arqueológica do país. A família do aviador também protestou. “Eles sempre foram contrários à operação”, explicou Vaudoit, o jornalista do La Provence. “Desaparecendo como o Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry era um mito sagrado para eles.”
Só três anos depois o DRASSM concordou com uma missão de identificação forma. Em setembro de 2003, Delauze tornou a levar o Minibex para perto da Ilha de Riou e, sob a orientação de Vanrell lá embaixo, trouxe o trem de pouso, um turbocompressor, uma peça de alumínio da fuselagem e alguns componentes hidráulicos e elétricos. Depois de várias visitas, resgataram cerca de 10% da aeronave.
Philippe Castellano, historiador amador, mergulhador e presidente do Aéro-Re. L.I.C., clube especializado na localização e identificação de restos de aviões abatidos na 2ª Guerra, foi chamado para conduzir o trabalho. Ele sabia o que procurar: um conjunto de números específico.
“A Lockheed identificava suas aeronaves com quatro números de fabricação únicos para cada avião, gravados em locais diferentes da estrutura, que provavelmente sobreviveriam a uma queda”, explicou. “Eu procurava o número 2734. Esse era o cálice sagrado.”
Inclinados sobre os pedaços de metal espalhados no chão de um hangar emprestado, Castellano e sua equipe verificaram cada fragmento, como joalheiros inspecionando diamantes. Ao chegarem à armação de um turbocompressor do motor, o coração de Castellano saltou: lá estava ele, na base do lado esquerdo, gravado à mão no aço com martelo e cinzel: 2734.
Ele ergueu o punho: “É isto aí, rapazes”, gritou. “Encontramos!”
Ali estava a verdade: Antoine de Saint-Exupéry morrera no Mediterrâneo, a cerca de um quilômetro de Riou.
Mas como aquilo acontecera e por que motivo?
Talvez ele tivesse sido abatido por um caça alemão, um motor houvesse parado ou seu sistema de oxigênio tivesse falhado, levando-o a perder a consciência. Os registros da Lufwaffe não mostram nenhum P-38 derrubado em 31 de julho de 1944 e não havia orifícios de bala nas peças recuperadas. Quanto à hipótese da falta de oxigênio, havia ar suficiente para respirar quando Saint-Exupéry desceu a altitudes mais baixas.
A verdade parece ser menos heroica. O impacto nas peças recolhidas pelo Minibex e a posição das válvulas do turbocompressor mostram que o último momento de Antoine de Saint-Exupéry em voo foi um mergulho quase vertical, com os motores em velocidade máxima. Isso indicaria que Saint-Exupéry sabia o que estava fazendo.
Em 31 de julho de 2004, 60 anos após o dia do desaparecimento de Saint-Exupéry, o pesqueiro Khalifa, comandado por Habib Benamor, ancorou a um quilômetro de Ilha de Riou.
Vanrell estava lá, com Delauze Castellano, Bianco, Vaudoit e muitos outros que participaram da busca de mais de seis anos. Um padre proferiu algumas palavras e foram lidos trechos dos livros de Saint-Exupéry, incluindo O Pequeno Príncipe. Depois um buquê foi lançado ao mar.
Os fãs de Antoine de Saint-Exupéry pelo mundo, que continuam a sonhar com a mágica que ele criou com sua pena, talvez prefiram a profecia do Pequeno Príncipe: “Tu sofrerás. Eu parecerei morto e isso não será verdade…”
Por Rudolph Chelminski