O super-herói com um segredo e a festa infantil

Confira esta belíssima narrativa que prova que pequenas coisas podem causar grandes transformações em nossas vidas.

Redação | 1 de Outubro de 2020 às 01:01

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No primeiro ano que morei em Los Angeles, fui palhaço em festas de aniversário. Isso mexeu muito com minha identidade, porque, embora me visse como cineasta, todo mundo me via nesse emprego ridículo. Para tornar a situação ainda mais confusa, ser palhaço é um trabalho que mascara a identidade. Usamos maquiagem para cobrir o rosto. Às vezes, eu tinha de usar máscara e cobri-lo inteiramente.

Em algumas festas, eu tinha de ir como um personagem específico. Funcionava assim: alguém da empresa deixava a fantasia para mim na noite da véspera da festa num ponto combinado, sempre o mesmo estacionamento vazio da farmácia CVS às dez horas. Era como a pior venda de drogas que você já viu, porque, em vez de drogas, eu recebia um saco de lixo contendo uma fantasia que fedia como os sonhos frustrados de todos os atores fracassados que a tinham usado antes de mim.

Então, diziam: “Amanhã você vai ser Mickey Mouse ou Bob Esponja.” Mas essas são marcas registradas, e na festa eu era “Ricky Mouse” ou “Zeca Esponja”.

Certa noite, me entregaram o saco de lixo e disseram: “Amanhã você vai ser o Batman.” Agora, saibam que, na época, eu usava um bigode gigantesco. Eu sei: um palhaço com bigode… É um risco enorme para os pais. Mas não queria alterar minha aparência física para fazer o serviço, porque no subconsciente seria admitir que eu era mais palhaço do que artista. Então, para aquela festa optei por não raspar o bigode. Escolha ousada, eu sei.

No dia seguinte, vou à festa. É num imenso parque público, e tenho de deixar meu carro estacionado bem longe, para as crianças não verem Batman saindo de um PT Cruiser. Por isso, estou lá no outro lado do parque, e a única maneira de chegar à festa é ir andando. Normalmente, nessas festas só o que temos a nosso favor é o elemento surpresa. A gente entra pela porta da frente: “Surpresa! Batman chegou!” Todas as crianças enlouquecem. Sem o elemento surpresa, essas visitas não têm graça nenhuma. E meu elemento surpresa sumiu, porque eles me veem chegando a quase meio quilômetro. E penso: “Devo tentar uma chegada especial para eles? Devo correr?” Mas ninguém vai querer um Batman suado e ofegante pela corrida, e continuo andando.

Isso me dá bastante tempo para refletir, e começo a me arrepender de não ter raspado o bigode. Fico pensando: “Caramba, essa festa não vai dar certo.” É claro que, assim que me aproximo o suficiente para que eles realmente percebam os traços de meu rosto, a festa inteira cai na gargalhada. Fico muito envergonhado. Quero dar meia-volta e correr para o Batmóvel. Mas aí o riso meio que muda e se transforma em vivas e aplausos. Não entendo direito o que causou a mudança. Com uma sensação meio agradável por dentro, penso: “Incentivo e apoio é isso? É tão novo…”

Então, penso que quero, sim, fazer uma chegada especial para essas crianças. Ainda estou a 20 metros da festa quando simplesmente começo a correr. Todos dão mais vivas, e minha capa adeja ao vento; com ou sem bigode, naquele momento sou o Batman.

Entro na festa correndo e todos me cumprimentam batendo a mão aberta na minha. Vejo o aniversariante com o pai, que ri e diz: “Viu? Eu te disse, filho. Eu disse que Batman usa bigode.” E penso: “Que coisa esquisita de se dizer a um filho.” Então ele me leva até o imenso bolo de aniversário com um Batman desenhado com glacê, e o Batman tem bigode. Só fico olhando com descrença. Penso: “Só pode ser uma boca malfeita”, mas é uma linha preta e grossa desenhada sob o nariz e que se enrola nos lados. Igualzinha a meu bigode.

Por isso todo mundo riu tanto quando cheguei, porque, quando trouxeram o bolo, todas as crianças fizeram muxoxo e disseram: “Batman não tem bigode.” Em vez de admitir que o bolo estava errado, os pais tentaram livrar a cara e disseram: “Não, Batman sempre teve bigode. Ele só raspa nos filmes.”

Naturalmente, as crianças duvidaram. Até que, numa estranha virada do destino, meu bigode se tornou o detalhe que confirmou o que os pais tinham dito e convenceu os garotos de que eu era mesmo Batman.

Aquelas crianças estavam na idade perfeita em que ainda acreditavam em milagres, em heróis, em que o mundo é um lugar inerentemente bom – tudo aquilo em que é tão difícil continuarmos acreditando quando crescemos num mundo frio e complicado.

Naquele ano, briguei muito com minha identidade: eu era cineasta ou palhaço? Mas, pelo menos naquele dia, não houve dúvida em minha mente sobre o que eu era. Posso não ter sido o herói que encomendaram, e com certeza não fui o herói que esperavam. Mas naquele dia fui o herói de que precisavam.

POR PAUL DAVIS de THE MOTH

CONTADO AO VIVO EM THE MOTH, LOS ANGELES, 24 DE JULHO DE 2018, © 2018 DE PAUL DAVIS, THEMOTH.ORG.