Mesmo com muitos perigos e animais selvagens, dois amigos resolveram encarar o Monte Wilson, uma montanha que fascina alpinistas de todos as idades.
A montanha faz parte das nossas vidas. Assim, em 30 de novembro de 2015, Greg Boswell, de 24 anos, de Fife, na Escócia, e Nick Bullock, de 49, de Llanberis, no norte do País de Gales, planejaram um dia de caminhada a fim de “mapear” a trilha para, no fim daquela mesma semana, escalar o Monte Wilson, de 3.260 metros de altura, nas Rochosas canadenses. Eles queriam subir por uma rota chamada Dirty Love (”amor sujo”). Nenhum dos dois tinha escalado o Monte Wilson, mas ambos eram alpinistas experientes.
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A subida foi tranquila para nós, embora houvesse alguma escalada técnica em duas paredes rochosas, que exigiram o uso de cordas e arneses. Tudo o que nos restava era subir a ravina íngreme e nevada nas duas horas seguintes para deixar uma trilha que nos permitiria uma abordagem rápida quando voltássemos para escalar a Dirty Love no fim da semana. Já tínhamos posicionado as cordas e os arneses no alto da parede de pedra, prontos para a descida durante a noite.
Depois de caminhar uns 15 minutos pela floresta, com os crampons e machadinhas ainda nas mãos, optamos por deixá-los junto à trilha recém-percorrida na neve fofa que chegava à cintura. Decidimos remover quase todo o excesso de equipamento e continuar apenas com as raquetes de neve, os bastões de caminhada e alguma comida e água essenciais na mochila.
Depois de percorrer a maior parte do caminho ravina acima, percebemos que continuar não iria adiantar, porque a neve estava compactada e dura, era fácil andar nela e estaria boa quando voltássemos no fim da semana. Optamos por descer de volta à estrada, onde tínhamos deixado nosso jipe alugado.
A hora está passando
Eram quase 19h45 e estava escuro quando começamos a descer a trilha. Na subida, tínhamos seguido os rastros de um animal grande, e isso me assustara um pouco. Mas pareciam compactados e antigos, e provavelmente não eram preocupantes. Afinal de contas, é o Canadá, pensei, onde há animais por toda parte, grandes e pequenos. Removemos as raquetes de neve e recuamos rapidamente pela ravina abaixo até voltar à neve fofa. Parei para encher minha garrafa d’água numa cascata de gelo que derretia, e, quando corria na direção de Nick, algo me fez dar meia-volta. O que vi me acompanhará pelo resto da vida. Correndo a toda pela neve solta e funda, a uns cinco metros de mim, vinha um urso-pardo. Nunca senti tanto medo em minha vida.
Gritei para Nick “É UM URSO!” e, imediatamente, tentei pôr alguma distância entre mim e essa sombra que atacava, vinda do escuro. Sem as raquetes, afundei até a cintura na neve.
O urso agarrou minha bota com a boca e a cuspiu como um caroço de maçã.
Estava claro: eles corriam muito perigo.
Senti náuseas. Freneticamente, me debati de costas na neve, tentando continuar avançando, mas o que estava para acontecer era inevitável! Gritei por Nick quando vi o urso se aproximando. Ele deu um último salto no ar e, antes que caísse diretamente sobre mim, levantei a perna direita e o atingi com a bota no focinho. Então, ele agarrou minha bota com a boca e a cuspiu de lado, como um desagradável caroço de maçã. Num instante, a parte inferior de minha perna estava em sua boca, e ele puxava e rasgava. Senti que ele me erguia, e só meus ombros tocavam a neve branca e fofa. Não consigo descrever como estava apavorado.
O urso baixou meu corpo de volta na neve, ainda com minha perna direita firme na boca, pisando em minha perna esquerda e, o tempo todo, puxando. Nisso, eu lhe dava tapas na cara e no focinho com a mão esquerda, e gritava pedindo ajuda a Nick. Sem querer, meu polegar entrou em sua boca enquanto ela segurava minha perna. Devo ter machucado o céu da boca do animal, porque ele grunhiu e me soltou.
Eu sentia náuseas de medo de ver outra vez os olhos verdes iluminados do urso.
Ainda aos gritos, vi o urso se virar e ficar sobre mim, o focinho a menos de dez centímetros do meu rosto. Mas pude ver que o facho máximo de minha lanterna de cabeça entrava diretamente em seus olhos. Ele parecia confuso, como se não conseguisse ver de onde vinham os gritos. Depois de provavelmente apenas um segundo, embora parecesse uma hora, o urso pisou em minha cabeça e correu para as árvores.
Levantei-me imediatamente e corri na direção de Nick. Não conseguia acreditar que minha perna funcionava! Pude ver o terror no rosto dele. “Ele me pegou, pegou a minha perna. O que fazer, o que fazer?” Eu só queria correr no sentido oposto, para longe da direção aonde fora o urso. Mas não havia como descer por ali. Precisávamos voltar às cordas deixadas para nosso retorno no alto da segunda parede rochosa que tínhamos escalado mais cedo. Não havia opção senão voltar à floresta.
Sem opção, continuaram andando
“Só temos de continuar andando”, retrucou Nick. “Temos de continuar andando!” Assim, eu o segui até a densa floresta, olhando por sobre o ombro o tempo todo.
O que estava por acontecer provavelmente foi mais assustador para mim do que o ataque em si. O ataque só durara alguns minutos, mas as cinco horas seguintes para voltar ao carro passariam a ser a mais absoluta tortura.
Rapidamente, atravessamos a floresta, eu seguindo agora na frente porque temia que minha perna ferida me deixasse muito para trás. Sempre que me espremia entre os galhos densos de pinheiro, eu sentia náuseas de medo de ver aqueles olhos verdes iluminados de novo. O que na vinda fora uma curta caminhada no bosque, agora parecia uma eternidade. Mas tinham sido apenas 20 minutos.
O que senti quando chegamos a nossos crampons e machadinhas de gelo foi quase euforia. Pelo menos agora talvez conseguíssemos nos defender, ou assim pensamos ingenuamente.
Como mais cedo nós é que tínhamos deixado os primeiros rastros novos na neve funda da floresta, simplesmente continuamos a seguir a trilha profunda e bem pisoteada.
Vontade de viver
Quer tenha sido por puro medo, quer por adrenalina ou só pela vontade de viver, esquecemos completamente o tempo que tínhamos levado para chegar a esse ponto desde o local em que deixamos as cordas. Algumas vezes, eu disse a Nick que achava que aquela não era nossa trilha. Mas tinha de ser, porque não havia outros rastros humanos lá no início do dia. Como era visível que eu estava perdendo muito sangue, seguimos em frente. Ambos sabíamos que tínhamos de continuar e voltar ao carro o mais rápido possível.
Chegamos a uma clareira na floresta, e a neve se firmou sob os pés. Os rastros, que eram buracos profundos na neve que pareciam pegadas humanas, passaram a ser marcas perfeitas de patas imensas na crosta enrijecida da encosta que levava para a escuridão. “Estamos seguindo um urso!”, gritei para Nick.
Medo
Foi então que o medo que eu achava que não poderia piorar deu um mergulho, e quase desmaiei. Olhei morro abaixo. Achei que conseguia ver a crista que tínhamos escalado antes de deixar nossas cordas e, sem pensar duas vezes, me virei e desci correndo. Foi uma ideia estúpida, porque a neve era apenas uma camada em cima de lajes íngremes de pedra, e comecei a escorregar incontrolavelmente sobre as rochas até a beira do penhasco que se aproximava. Ainda bem que parei bem pertinho da borda. Como agora estava num pico, conseguia ver o despenhadeiro a distância, em ambos os lados. Não estávamos mesmo no lugar certo!
“Psssssiu”, pedi silêncio a Nick, que descera a encosta para ficar comigo. “Escute! Estou ouvindo o urso andando lá no alto do penhasco!” Eu estava paralisado; tinha certeza de que ouvia o urso se aproximando de nós. Fiquei tonto, também por perder muito sangue, mas principalmente de medo. Nick me convenceu de que eu ouvia apenas a cachoeira pingando no penhasco lá embaixo. Percebi que ele tinha razão, mas ainda estava apavorado e chocado demais para pensar direito.
Quando refizemos os passos, uma em cada duas pegadas era vermelho-sangue.
Decidimos que a única maneira de encontrar nossas cordas era refazer a trilha até os crampons e as machadianhas e, dali, procurar a trilha original. Isso significava retornar diretamente para onde o ataque acontecera. Mais uma vez, me senti enjoado.
Novamente sem pensar, eu simplesmente segui por onde viéramos, cambaleando no alto do despenhadeiro. Foi aí que toda a neve sob meus pés cedeu, e fiquei me agarrando a qualquer coisa para não despencar na escuridão. Eu sabia que o choque interferia com meu raciocínio e com a tomada de decisões, e acho que Nick também percebeu, porque, educadamente, ele assumiu o controle da situação. Sugeriu que puséssemos os crampons e subíssemos de volta pelas lajes de pedra até onde tínhamos saído da trilha principal para continuar a partir dali.
Na montanha, pegadas tingidas de vermelho escuro
Durante mais de uma hora, refizemos nossos passos. Não conseguimos acreditar que tínhamos nos afastado tanto da trilha. Alternadamente, minhas pegadas estavam tingidas de vermelho escuro.
Eu me sentia mais fraco a cada passo. Cheguei a sugerir que subíssemos numa árvore grande para esperar o amanhecer, mas Nick ressaltou que não era boa ideia, e continuamos. Finalmente, encontramos nossos rastros originais. Havia rastros frescos de urso por todo lado, mas aí vimos nossas cordas empilhadas ao lado da árvore grande, de onde desceríamos de rapel, e seguimos diretamente para elas sem pensar duas vezes.
Tínhamos passado o tempo todo gritando e uivando a plenos pulmões para afastar quaisquer outros olhos que se escondessem à espreita na floresta. Quando chegamos às cordas, Nick interrompeu seu uivo apavorante para me ajudar a separar o equipamento. Numa fração de segundo, não houve som nenhum no vale inteiro, que se estendia por quilômetros de todos os lados; então, vindo da escuridão, ouvimos o uivo visceral de uma matilha de lobos no vale lá embaixo.
Em qualquer outro momento eu ficaria no sétimo céu. Adoro lobos – assim como ursos –, e meu sonho é ver um lobo em seu hábitat, mas não naquela noite. Tentei tirar aquilo da cabeça enquanto descia de rapel pela encosta coberta de neve. Depois que Nick desceu gritando e berrando, continuamos até o alto da próxima faixa de pedras, e prendi a corda para o segundo rapel.
Descendo pela cachoeira
Descíamos pela cachoeira não congelada que tínhamos querido escalar mais cedo, uma rota muito usada nas condições certas. Mas havia bastante água correndo naquele dia. Fui na frente, mas não consegui encontrar os pinos de ancoragem na pedra para prender nossas cordas. E acabei pendurado naquela parede de rocha. E prendendo meu equipamento numa rachadura na própria parede para me manter em segurança. Isso liberou a corda, permitindo que Nick descesse para procurar os pinos. O rapel levou mais tempo do que deveria, mas ali, pendurado na imensa parede, preso apenas a duas pequenas peças de equipamento de alpinismo, nunca me senti tão seguro em toda a minha vida. Nada me alcançaria ali. Quase torci para Nick largar as cordas por acidente, para que não tivéssemos de continuar descendo até onde animais poderiam estar à espreita.
Agora minha perna doía muito, e, conforme a adrenalina ia sendo eliminada, meu passo assustado e apressado se desacelerou num andar coxeado e decidido. Finalmente chegamos à estrada e ao jipe, e, enquanto Nick guardava a sacola e o equipamento no carro, larguei minha mochila na caçamba, sentei-me no banco de trás e tranquei a porta!
No hospital
Faltavam 15 para uma da manhã quando começamos a viagem de 140 quilômetros de volta a Banff. Chegamos ao hospital quase três da madrugada. Uma enfermeira perguntou o que acontecera, e ri quando lhe contei que fora atacado por um urso. Mas parece que ela não achou graça. Relaxado no leito azul, frio e limpo, tive vontade de chorar. Finalmente estava a salvo. Assim, o ferimento na perna era problema do médico.
Depois de radiografias, mais de 40 pontos e irrigação da ferida, saí do hospital ao meio-dia seguinte e voltei para a casa de amigos na vizinha Canmore, na província de Alberta. Sendo assim, mais alguns dias de perna para cima e névoa mental provocada pelos analgésicos, e finalmente consegui um avião para retornar à Escócia.
Desde então, Greg escalou rotas no Tibete e em Terra Nova e, recentemente, voltou de uma viagem a Alberta, perto do local do ataque do urso. “A experiência está sempre lá, para ser franco”, diz ele, “mas, para continuar fazendo algo que amo, tenho de me pôr nesse tipo de situação e lidar com ela.”
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POR GREG BOSWELL DE GREGBOSWELL.CO.UK