Procurando um conto de Natal inspirador? Conheça a emocionante história do padre que arriscou a própria vida para celebrar uma missa de Natal.
Redação | 25 de Dezembro de 2019 às 12:00
Jean Pasqualini, filho de pai francês e mãe chinesa, passou sete anos num campo de trabalhos forçados na China por “atividades contrarrevolucionárias”. Em 1964, depois de libertado, foi morar em Paris e em 1970 publicou este relato sobre o padre que arriscou a vida para celebrar uma missa de Natal:
Ele se chamava Hsia e, se por acaso ainda estiver vivo, deveria ser libertado por esses dias de um campo de prisioneiros ao sul de Pequim. Foi lá que o vi pela última vez, no fim de 1961. Mas, em todos os anos passados desde então, sempre que é Natal ele cresce em minha lembrança, um chinês velho e frágil, de rosto enrugado e olhos invencíveis. Mais uma vez o vejo sereno, em pé naquele vento gelado, declarando sua unidade com Deus – embora soubesse que podia ser fuzilado pelo que estava fazendo.
Conheci Hsia no início daquele ano, depois de uma daquelas mudanças em massa de prisioneiros que o líder de brigada Yang ordenava regularmente para nos manter ansiosos. Fui designado para uma cela com 18 homens. Tínhamos de limpar pocilgas, recolher esterco e enterrar os mortos. Hsia dormia na esteira de palha ao lado da minha.
Por um lado, aparentava ser tão velho e fraco que parecia impossível que conseguisse fazer sua parte do trabalho. Mas o verdadeiro problema era que fora monge trapista e vivia falando que Deus nos ajudaria se não perdêssemos a fé.
A maioria de nós perdera a fé havia muito tempo. O regime comunista cuidara disso. A religião tinha sido da República Popular como um ópio e superstição, e foram decretadas punições graves para quem persistisse na crença de que poderia haver um poder mais alto do que Mao Tsé-tung. Foram perseguidos principalmente os cristãos, pois multiplicavam seus pecados adorando “o Deus dos imperialistas”.
Hsia, principalmente, devia saber do perigo: fora condenado a 20 anos de trabalhos forçados pelo simples fato de ser padre. Ainda assim, continuava rezando e praticando a religião a seu modo. Nós o deixávamos em paz e até o evitávamos. Tínhamos mais o que temer sem a religião de Hsia.
Não sei como descobriu que eu era o único outro católico na cela. Certo dia, durante uma pausa no trabalho, ele se aproximou de mim.
– Você ainda é um bom católico, não é, Jean? Em seu coração?
– Sou um prisioneiro, velho – disse eu, cansado. – Deixe-me em paz.
Ele não deu mostras de ter ouvido.
– Podemos rezar juntos, Jean. Posso ouvir sua confissão.
– Veja bem, Hsia – disse eu com rispidez, morrendo de medo de que alguém ouvisse o velho idiota. – Se quiser ficar na frente de um pelotão de fuzilamento, o problema é seu. Só estou tentando me manter vivo. Então cale a boca, ok?
Ele não se zangou.
– Tudo bem, filho. Compreendo. Mas não se esqueça de que sou seu amigo. – E se afastou para pegar seus cestos de estrume.
Não sei como, por mais patético que parecesse, Hsia conseguia andar aos tropeços sob a carga dos cestos com 30 quilos de esterco que levávamos pelo terreno coberto de restolho. A vara sobre seus ombros, da qual pendiam os cestos, quase o dobrava ao meio; mas ele fazia seu trabalho – e, muitas vezes, o trabalho dos homens mais fracos.
– O que você acha que mantém o velho em pé? – perguntou alguém.
– Deus – respondeu outro homem. – Quando Yang não está olhando, Deus desce e leva o esterco para ele.
Todos gargalhamos com isso.
Trabalhávamos da aurora ao pôr do sol, e nossa ração diária consistia em um substituto do pão e um prato de sopa rala. As celas eram choupanas imundas infestadas de pulgas e moscas, e dia após dia os que estávamos na equipe de sepultamento levávamos os inevitáveis cadáveres numa carroça morro acima até o cemitério.
Naquele verão, pensei que minha hora havia chegado. Derrubado pela desnutrição e pela disenteria, desmaiei no campo e fui levado para a enfermaria. Passei dias em coma. Certa noite, quando recuperei os sentidos, Hsia estava lá, abanando meu rosto. Depois, ocultando os movimentos para que ninguém visse, começou a me dar colheradas de guisado quente. Senti gosto de rã, legumes e arroz, e a cada colherada recuperei um pouco de força.
– Eles podem nos atormentar e destruir nosso corpo, meu filho – sussurrou ele –, mas não podem tocar nossa alma se não deixarmos.
Ele voltou outras três vezes, sempre trazendo mais guisado. Só em setembro, quando tive força suficiente para voltar ao trabalho, eu soube que ele insistira com os outros para que colhessem legumes selvagens e caçassem rãs na pausa do meio-dia e que furtara pessoalmente pequenas porções de arroz até ter o suficiente para encher um prato e cozinhar numa fogueirinha furtiva. Agradeci e me envergonhei do modo como o tratara.
Fora em 1947, quando os comunistas invadiram Yangkiaping, sua província natal. Naquele dia, ele estava fora do mosteiro e, ao voltar, encontrara os monges seus irmãos chacinados, os prédios em chamas. Os soldados, satisfeita a sede de sangue, se contentaram em jogá-lo na prisão. Depois de dois anos num centro de interrogatório, ele foi condenado a 20 anos de “reforma pelo trabalho”.
– Bem, pelo menos você ainda está vivo – comentei.
Ele me fitou nos olhos.
– Estou vivo porque Deus assim quis. Acredito que Ele tem uma tarefa para mim. Caso contrário, eu preferiria o mesmo destino de meus irmãos.
Naquele novembro, Yang me encarregou de uma seção designada para preparar arrozais na Faixa de Campo 23. Pouco depois, mandou me chamar. Disse que recebera a denúncia de que Hsia rezava secretamente à noite.
– É verdade? – berrou ele.
Forcei um sorriso.
– Ele está velho, senhor. Depois de trabalhar o dia todo no campo, fica exausto e balbucia dormindo.
Yang me olhou com raiva por um longo momento e ameaçou:
– Diga-lhe que, se eu receber a denúncia de uma única palavra de oração vinda dele, vocês dois pagarão caro.
Assim que voltei à cela, fui falar com Hsia.
– Você precisa tomar cuidado – alertei. – Para mim, são alguns meses na solitária. Mas para você… sua vida está em jogo!
– E o que há de tão importante assim em minha vida? – perguntou ele baixinho.
Em dezembro, o tempo ficou extremamente frio, e um vento cruel vinha uivando de noroeste. Um dia, perto do fim do mês, Hsia veio até mim na borda do arrozal e perguntou se poderia descansar alguns minutos.
– Logo chega a pausa regular. Não dá para esperar até lá, velho?
– Não, porque os guardas virão. – Ele lutou com as palavras que queria dizer. – Sabe que dia é hoje?
– Segunda-feira, 25 de dezembro – respondi, irritado.
Então parei de repente, percebendo no mesmo instante que era Natal e também que o velho queria rezar.
– Hsia – implorei –, você é louco de correr esse risco.
– Preciso – disse ele simplesmente. – E quero que você reze comigo. Somos os dois únicos aqui para quem este dia é sagrado.
Olhei em volta. Não havia guardas à vista, e os homens mais próximos estavam no outro lado da Faixa de Campo 23.
– Entre naquela vala de irrigação – indiquei. – Vou lhe dar quinze minutos, velho. E é só.
– E você?
– Eu fico bem aqui.
Morri mil mortes nos minutos seguintes, ouvindo, em cada mudança do tom do vento, o grito de um guarda. Então algo, não sei o quê, transcendeu meu medo e me levou até a vala. O que vi ali era tão irresistível que, pela primeira vez em quatro anos, esqueci Yang e o campo de prisioneiros e me lembrei de como era acreditar em algo além de apenas me manter vivo.
Por igreja, ele tinha a vasta amplidão do Norte da China, e um monte de terra gelada era seu altar. Como vestes sacerdotais, usava o uniforme esfarrapado da prisão; uma caneca de esmalte lascado servia de cálice. Com algumas uvas há muito guardadas, ele conseguira fazer algo que lembrava vinho e, com um punhado de trigo que deve ter furtado na colheita de verão, fizera um biscoito fino para usar como hóstia.
Nenhuma vela ladeava o altar de Hsia. Em seu lugar, uma chama minúscula tremulava acima de alguns gravetos. Como coro havia o vento noroeste, que soprava sem parar e se transformava em hino. Naquele momento me pareceu que as chamas levavam as orações do corajoso velho diretamente para o céu enquanto o vento as espalhava pelos quatro cantos do mundo.
De repente, senti vontade de ter a mesma fé de Hsia. Em nenhum lugar do mundo naquele dia de Natal, pensei, nem nas mais grandiosas igrejas da cristandade, alguém celebraria uma missa tão significativa quanto aquela.
– Et cum spiritu tuo.
Sem se surpreender, Hsia fez um gesto de cabeça como estímulo.
– Ite missa est – disse ele.
E a resposta quase esquecida veio espontânea a meus lábios:
– Deo gratias. – Graças a Deus.
A missa terminara.
– Espero que o Senhor entenda que não quisemos ofender – disse Hsia. – Este não é o jeito adequado…
Não consegui falar. Seus valores imutáveis e imutados – seu medo, não de ser fuzilado, mas de ofender Deus – finalmente deixaram claro o que ele tentava me dizer todos aqueles meses: que apenas sobreviver como um animal, com esperteza e medo constante, não basta para um homem. Precisamos de algo além de nós por que viver, um sonho, uma fé. E eu disse:
– Tenho certeza de que Deus entenderá, padre Hsia.
– Obrigado, Jean. Que Ele sempre o guarde.
Então vi Yang vir pedalando em sua bicicleta rumo à vala. Só tive tempo de entrar e estender as mãos para o fogo, como se as aquecesse, antes que ele nos olhasse com raiva.
– O que vocês estão fazendo aí? – berrou ele.
– Esse velho maluco decidiu acender uma fogueira para se aquecer – respondi com um sorriso encabulado.
– Só parem de trabalhar na hora da pausa, não antes! – rugiu ele. – Agora voltem ao trabalho!
Alguns dias depois houve outra transferência de cela, e Hsia e eu fomos separados. Nunca mais o vi. Mas, a partir daquele dia, durante minha permanência naquele campo desumano, um cantinho secreto de meu coração estava a salvo de Yang e de seus guardas – a salvo e sem medo.
Hsia pode estar vivo hoje ou pode estar morto. Mas, mesmo que o tenham matado, só destruíram o corpo que abrigava sua alma invencível. Esta sempre estará fora do alcance deles.