Histórias de um veterinário de província – Parte 2

Acompanhe a segunda parte da história de James Herriot, veterinário de uma bucólica região da Inglaterra. Suas memórias da vida profissional e pessoal deram origem ao livro "All Creatures Great and Smal", lançado em 1984. 

Redação | 29 de Janeiro de 2019 às 21:00

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James Herriot foi um cirurgião veterinário apaixonado por sua profissão. Suas memórias da vida profissional e pessoal deram origem ao livro “All Creatures Great and Smal“, lançado em 1984. No Brasil, a obra também originou a série “Criaturas Grandes e Pequenas“, transmitida pela Animal Planet.

Nessa segunda parte da história, James conhece Helen, uma encantadora mulher. O jovem veterinário também se encontra com a Srta. Stubbs, uma senhora apaixonada por seus animais, e se emociona com a pergunta: “Os animais têm alma?”

Leia a primeira e a terceira parte da história aqui!


Uma moça da minha idade

A casa da fazenda ficava num terreno plano, numa curva do rio. Andei entre os prédios, gritando, como sempre fazia, porque alguns consideravam um insulto ir até a casa e perguntar se o fazendeiro estava. Os bons fazendeiros só entram em casa na hora da refeição. Mas meus gritos não tiveram resposta, por isso bati à porta.

Uma voz respondeu “Entre!”, e abri a porta de uma cozinha imensa com presuntos e pedaços de bacon pendurados em ganchos no teto. Uma moça de blusa xadrez e calça de linho verde sovava massa. Ela ergueu os olhos e sorriu para mim.

– Desculpe não abrir a porta. Estou com as mãos ocupadas. – Ela ergueu os braços, brancos de farinha até o cotovelo.

– Tudo bem. Eu me chamo Herriot. Vim ver um bezerro. Pelo que entendi, está manco.

– É, achamos que ele quebrou a pata. Se não se incomodar em esperar um minutinho, levo você. Meu pai e os homens estão no campo. Sou Helen Alderson.

Lá fora, ela se virou para mim e riu.

– Temos de andar um pouco. O bezerro está num dos prédios lá em cima.

Olhei a moça alguns segundos.

– Ah, tudo bem. Não me importo.

Quando abri a meia porta, mal consegui ver meu paciente no interior escuro.

– Pode segurar a cabeça dele enquanto o examino, por favor? – pedi.

A moça prendeu o bezerro, uma das mãos sob o queixo, a outra segurando uma orelha.

– Seu diagnóstico está certo. Fratura limpa do rádio e do cúbito, mas há pouquíssimo deslocamento, deve resolver com o gesso.

Encharquei uma das bandagens gessadas num balde com água e a apliquei na perna, seguida por uma segunda e uma terceira até o membro estar coberto por um estojo branco que endurecia rapidamente.

A moça soltou a cabeça, e o animalzinho saiu trotando.

•••

A moça soltou a cabeça, e o animalzinho saiu trotando.

– Olhe só! – gritou ela. – Ele já está apoiando o peso na pata! E ele não parece muito mais contente?

Sorri. O bezerro não sentia dor, agora que as extremidades fraturadas do osso estavam imobilizadas; e o medo que sempre desmoraliza um animal ferido sumira magicamente.

– Ele terá de ficar um mês com o gesso, e, se você me chamar, voltarei para tirar.

Quando saímos do estábulo, o sol e o ar doce e quente nos receberam como uma onda. Olhei o outro lado do vale.

– É maravilhoso aqui em cima – comentei. – Não consigo deixar de sentir pena de todos os milhares de veterinários que não trabalham nos Yorkshire Dales.

Comecei a falar de meu trabalho. Então, voltei a meus dias de estudante e lhe contei os bons momentos, os amigos que fiz e nossas esperanças e aspirações. Normalmente eu não era muito falante. Mas fazia muito tempo que eu não falava com uma moça da minha idade. Quase esquecera como era.

Não me apressei a voltar, mas parece que não passou tempo nenhum até cruzarmos pelo campo e chegarmos à fazenda. Virei-me com uma das mãos na porta do carro.

– Bem, nos vemos daqui a um mês. – Parecia um tempo enorme.

A moça sorriu.

– Obrigada pelo que fez.

Quando liguei o motor, ela acenou e entrou em casa.

– Helen Alderson? – perguntou Siegfried mais tarde no almoço. – Uma garota adorável. A mãe morreu há alguns anos, e ela cuida daquilo tudo. Cozinha e cuida do pai e do irmão e da irmã mais novos. – Ele pôs purê de batata no prato. – Metade do sangue jovem do distrito está atrás dela, mas parece que ela não namora firme nenhum deles. Um tipo exigente, acho.

Os animais têm alma?

O cartão balançava ao lado da cama da velha senhora. Era apenas uma tira de cartolina, com uns 20 centímetros de comprimento e letras simples, enrolado sem cuidado num antigo bico de gás. De onde estava deitada, a Srta. Stubbs conseguia olhá-lo e ler “Deus está perto” em maiúsculas quadradas.

Ela estava confinada ao leito fazia muito tempo. Mas nunca mencionava a doença e as dores. Toda a sua preocupação era com os três cães e dois gatos.

Eu a visitava regularmente havia mais de um ano, e o padrão nunca mudava: os latidos furiosos dos cães, e a Sra. Broadwith, que cuidava da Srta. Stubbs, empurrava todos os animais, menos meu paciente, para a cozinha nos fundos.

Hoje era o velho Prince. Com aquele coração, já devia estar morto havia muito tempo. Assim, levantei-me, fiz um carinho na cabeça dele e lhe dei uma injeção intramuscular de digitoxina.

– Espero que isso firme o coração e a respiração, Srta. Stubbs. E vou lhe deixar um remédio para a bronquite dele.

O estágio seguinte da visita começava agora, quando a Sra. Broadwith trazia o chá e deixava o restante dos animais sair da cozinha. Havia Ben, um sealyham, e Sally, uma cocker spaniel, e eles começaram uma disputa ensurdecedora de latidos com Prince, seguidos de perto pelos gatos.

Essa era a cena costumeira das muitas xícaras de chá que tomei com a Srta. Stubbs. Ali sentado, eu sentia um pouco de medo da responsabilidade que tinha. A única coisa que levava alguma luz à vida daquela brava senhora era a devoção de sua matilha desgrenhada. E eram todos idosos.

Dona da matilha

O cartão balançava ao lado da cama da velha senhora. Era apenas uma tira de cartolina, com uns 20 centímetros de comprimento e letras simples, enrolado sem cuidado num antigo bico de gás. De onde estava deitada, a Srta. Stubbs conseguia olhá-lo e ler “Deus está perto” em maiúsculas quadradas.

Ela estava confinada ao leito fazia muito tempo. Mas nunca mencionava a doença e as dores. Toda a sua preocupação era com os três cães e dois gatos. Eu a visitava regularmente havia mais de um ano, e o padrão nunca mudava: os latidos furiosos dos cães, e a Sra. Broadwith, que cuidava da Srta. Stubbs, empurrava todos os animais, menos meu paciente, para a cozinha nos fundos.

Hoje era o velho Prince. Com aquele coração, já devia estar morto havia muito tempo. Auscultei-o com o estetoscópio. Parecia haver quase tanto sangue retornando quanto sendo bombeado no sistema circulatório.Levantei-me, fiz um carinho na cabeça dele e lhe dei uma injeção intramuscular de digitoxina.

– Espero que isso firme o coração e a respiração, Srta. Stubbs. E vou lhe deixar um remédio para a bronquite dele. O estágio seguinte da visita começava agora, quando a Sra. Broadwith trazia o chá e deixava o restante dos animais sair da cozinha. Havia Ben, um sealyham, e Sally, uma cocker spaniel, e eles começaram uma disputa ensurdecedora de latidos com Prince, seguidos de perto pelos gatos.

Essa era a cena costumeira das muitas xícaras de chá que tomei com a Srta. Stubbs. Ali sentado, eu sentia um pouco de medo da responsabilidade que tinha. A única coisa que levava alguma luz à vida daquela brava senhora era a devoção de sua matilha desgrenhada. E eram todos idosos.

Os animais têm alma?

A próxima visita foi em resposta a um chamado urgente da Sra. Broadwith. Ben desmaiara. DOA é o que escrevemos no diário. Dead on arrival, morto ao chegar. A Srta. Stubbs olhou alguns momentos pela janela e depois se virou para mim.

– Sabe, Sr. Herriot – disse ela –, eu serei a próxima.

– Ora, que bobagem! A senhora só está se sentindo um pouco triste, é isso.

Mas fiquei perturbado. Nunca a tinha ouvido sequer insinuar uma coisa dessas.

– Não tenho medo. Sei que algo melhor me espera. Nunca tive nenhuma dúvida. São meus cães e gatos, Sr. Herriot. Tenho medo de nunca mais vê-los quando me for, e isso me preocupa muito. – Ela balançou a cabeça no travesseiro, e vi lágrimas em seu rosto. – Dizem que os animais não têm alma.

– Pois não acredito nisso. – Dei um tapinha carinhoso na mão que ainda segurava a minha. – Se ter alma significa ser capaz de sentir amor, lealdade e gratidão, então os animais estão em posição melhor do que muitos seres humanos. A senhora não tem com que e preocupar.

A tensão sumiu de seu rosto, e ela riu.

– Desculpe-me por chateá-lo com isso. Sei que o senhor é jovem. Mas, por favor, me diga: qual é sua crença? Meus animais irão comigo?

Eu me remexi na cadeira e engoli em seco uma ou duas vezes.

– Srta. Stubbs, temo não ter muita clareza sobre isso. Mas tenho certeza absoluta de uma coisa. Aonde quer que a senhora for, eles também irão.

Ela ainda me fitava, mas seu rosto estava calmo outra vez.

– Obrigada, Sr. Herriot. Sei que o senhor está sendo franco. É nisso que o senhor realmente acredita, não é?

– Sim. Com todo o meu coração.

Um mês depois

Cerca de um mês depois, por puro acaso, soube que vira a Srta. Stubbs pela última vez. Eu fazia minha ronda, e um fazendeiro mencionou que a casa dela estava à venda.

– Mas e a Srta. Stubbs? – perguntei.

– Ah, ela partiu de repente umas três semanas atrás. Dizem que a casa está em mau estado.

– A Sra. Broadwith não vai ficar?

– Não, soube que ela está no outro lado da aldeia.

Forcei meu carrinho queixoso na velocidade máxima até o bairro. A Sra. Broadwith respondeu em pessoa à porta.

– Foi triste com a velha senhora – disse ela. – Seja como for, teve um fim pacífico. Só dormiu e não acordou.

Não consegui mais me conter.

– O que aconteceu com os animais? – perguntei.

– Ah, estão no quintal – disse ela calmamente. – Terão um bom lar comigo enquanto viverem.

Olhei o típico rosto campestre do Yorkshire, as bochechas pesadas com suas rugas duras negadas pelos olhos bondosos.

– Isso é maravilhoso – disse eu. – Mas a senhora não achará um pouco… hã… caro alimentá-los?

– Não, não se preocupe com isso. Tenho um pequeno pé de meia.

– Bem, ótimo, e passarei de vez em quando para ver como estão.

Levantei-me e andei na direção da porta. A Sra. Broadwith ergueu a mão.

– Só há uma coisa que eu gostaria que o senhor fizesse antes que comecem a vender as coisas da casa. Poderia passar lá e pegar o que restou dos remédios que prescreveu para eles? Estão na sala da frente.

Peguei a chave e fui até a casa deserta. Nada fora mexido. Dei uma volta, recolhendo garrafas meio vazias, um pote de pomada, a caixa de papelão com os comprimidos do velho Ben. Não voltaria mais ali. Parei à porta e li pela última vez o cartão que pendia junto da cama vazia.

DO LIVRO ALL CREATURES GREAT AND SMALL, © 1970, 1972, 1973 DE JAMES HERRIOT