Roja Dove é uma das maiores autoridades quando o assunto é perfumaria, e sua trajetória e experiência são impressionante.
Thaís Garcez | 10 de Julho de 2020 às 17:00
“Narizes”, no mundo dos perfumes, são os poucos especialistas capazes de reconhecer e distinguir centenas de aromas. A capacidade é tanto inata quanto aprimorada com anos de prática, diz o perfumista Roja Dove, uma das maiores autoridades da indústria.
Os cheiros de sua infância eram o odor da floresta perto da casa de seus avós em Kent, a colheita de hiacintáceas e o aroma apimentado da mãe cozinhando quando ele já estava na cama à noite. “Quando analiso meu paladar olfativo, sei que ele inclui todas essas coisas – aromas de terra, madeira e pimenta – que, com certeza, foram produto da minha infância.”
Roja redescobriu sua lembrança olfativa mais antiga quando experimentava aromas de Thierry Mugler inspirados no filme Perfume. “Eles me deram uma prova e eu disse: ‘Isso me lembra de quando mastiguei couro!’ Tudo me voltou de repente – não um cheiro, mas um gosto. Os dois são tão interligados… Quando era pequeno, costumava mastigar rédeas, e me lembrei do gosto e do cheiro de couro molhado.”
Quando era adolescente, Roja começou a gostar cada vez mais de perfumes e do mundo da perfumaria, com interesse especial na Guerlain. A história da marca se tornou uma paixão – maravilhosamente recompensada quando recebeu uma encomenda contendo uma fragrância Guerlain (“Acho que era Habit Rouge”), um lindo livro e um frasco vintage. “Parecia que o Natal tinha se misturado com o Nirvana!”
A persistência valeu a pena quando ele foi convidado a entrar para a empresa e começar o treinamento de perfumista. “Recebíamos dez diferentes materiais básicos na forma de óleos para cheirar e guardar na memória. Você ganha um livro – que deve manter a vida toda – no qual anota as associações – pode ser a casa da avó ou um porão úmido. É um jogo da memória. Você enche o livro com associações olfativas. No dia seguinte, recebe mais dez, e assim vai acumulando lembranças. Normalmente parávamos de registrá-los ao chegar ao número 40 ou 50, e começávamos a comparar os óleos. Então, primeiro entendíamos os óleos de maneira pessoal e depois começávamos a aprender sobre eles de um modo mais objetivo e a descobrir suas características olfativas.”
“Há cerca de três mil matérias-primas. Ninguém conhece todas, mas eu conheço várias centenas.” Entre elas está o exclusivo Jasmine de Grasse: o óleo custa 28 mil libras o quilo, é mais caro do que uma barra de ouro e usado apenas por ele, pela Guerlain, pela Chanel e por Jean Patou. “Sou a única pessoa física que o compra”, diz ele. “Quando crio um perfume, uso 80% de material natural. A média da indústria hoje é de 15% a 20%.” Aromas modernos sintéticos demais o incomodam: “Essas estruturas monolíticas não respiram.”
Quando trabalha, ele prefere que os odores que o cercam sejam neutros. É por isso que, em sua opulenta Haute Parfumerie na Harrods de Londres – feita de laca preta, candelabros de cristal e vidro Lalique – não se sente cheiro nenhum até um frasco ser aberto e sua fragrância liberada. “Quando estou criando um perfume por encomenda, costumo pedir ao cliente que evite beber café, álcool e comer alimentos apimentados por 24 horas”, diz ele. “O cheiro desses produtos exala pela pele e na respiração.”
Ele acrescenta que sua dieta é “incrivelmente saudável” – peixes, frutas frescas e hortaliças, muita água, nada de carne e nenhum alimento frito ou gorduroso. “Mas eu não sou fanático por nada. A vida para mim é equilíbrio. É baseada em autoproteção.” Tudo isso vale a pena. Ele quase nunca pega resfriados, mas, quando pega, a perda do olfato é cruel. “Sinto-me claustrofóbico, como se estivesse cego e o mundo tivesse ficado em silêncio.”
Ele fica triste por tão poucas pessoas valorizarem um sentido que pode trazer tanto prazer. “Eu digo às pessoas: ‘Parem! Parem!’ Outro dia, estava passando pelo Ritz e senti de repente cheiro de jasmim. Estavam plantados nas jardineiras. Era maravilhoso! Mas a maioria das pessoas está tão ocupada correndo para lá e para cá que nunca teria notado.
“As pessoas quase nunca pensam no olfato, mas ele é um sentido crucial, vital. A maneira com que cada um responde aos odores é totalmente pessoal. Chamo isso de digital olfativa, porque é tão única como uma impressão digital.
“A chave para aguçar esse sentido é cultivá-lo. Compre uma pequena quantidade de óleos essenciais diferentes e adicione um pouco à água do banho. Compre óleo de nérole, que dá sensação de bem-estar. Explore os aromas que o cercam e crie um ‘diário de viagem’ particular, um pequeno livro no qual você anotará o que descobrir. Essa é a verdadeira magia do odor. Ele nos transporta para mães, amantes e lugares que visitamos. É profundo.”