Verna Marzo tinha menos de 10% de probabilidade de sobrevivência. Sua única esperança eram procedimentos médicos radicais.
Redação | 1 de Agosto de 2020 às 01:01
Em 18 de março de 2017, Verna Marzo acordou às quatro da manhã, em seu apartamento em Calgary, no Canadá, com uma dor abdominal torturante. As colegas que dividiam o apartamento com ela a levaram ao pronto-socorro mais próximo.
Fazia um ano que Verna, de 44 anos, convivia com um cisto descoberto pelos médicos que pressionava um ovário. Provavelmente era benigno e encolheria sozinho, disseram. Mas, no hospital, os exames revelaram que o cisto crescera até o tamanho de uma toranja. Pior ainda, a dor e a febre de Verna sugeriam que teria se rompido. Os médicos, sabendo que ela precisaria de uma cirurgia de emergência, ordenaram sua transferência de ambulância para o Centro Médico Foothills.
O plantonista chefe naquela noite recomendou uma histerectomia total. Verna, que queria dar fim ao sofrimento, consentiu.
Mas, pela manhã, cirurgia terminada, ainda havia algo errado. Verna estava com febre altíssima, o abdome distendido. Quando chegou para seu turno às oito da manhã, o Dr. Paul McBeth, médico da UTI, examinou a ficha da paciente. Remover um cisto é uma cirurgia bastante simples, pensou, mas é claro que ela está em choque. “Estamos deixando de ver alguma coisa”, alertou ele aos residentes.
Debie, irmã de Verna, ficou atônita ao abrir a cortina para visitá-la naquela manhã. Verna inchara da noite para o dia por causa do fluido que vazava dos vasos sanguíneos.
Enquanto isso, sua pressão arterial despencara, os tecidos estavam sem oxigênio e ela respirava por um ventilador mecânico. Os médicos induziram o coma para que o organismo não precisasse trabalhar tanto e lhe deram doses altas de antibióticos de amplo espectro para combater a infecção.
O corpo de Verna estava em choque, mas há muitos tipos de choque. Os médicos viraram detetives. McBeth crivou Debie de perguntas. A irmã viajara? Tinha alguma alergia? Teria tomado uma overdose? Qual era o histórico familiar?
Verna sempre fora uma tempestade de energia. Quando menina, nas Filipinas, adorava esportes, principalmente correr e surfar, e suas travessuras eram contagiantes. Ela é a segunda de quatro irmãos de uma família que ama se divertir.
Com 28 anos, Verna decidiu deixar o trabalho com marketing na cidade natal e procurar emprego no exterior. Essa busca a levou a Calgary em 2001, onde trabalhou como babá e depois abriu uma empresa de limpeza e decoração de interiores.
Verna encontrou na igreja uma comunidade cheia de espíritos fraternos, à qual, anos depois, se juntaram suas irmãs Debie e Luela, que se mudaram para Calgary também. Tudo corria bem no novo lar – até aquele dia.
Cerca de 18 horas depois de Verna chegar ao Hospital Foothills, os temores iniciais de McBeth se confirmaram: Verna estava com septicemia, inflamação maciça provocada por E. coli na corrente sanguínea. De que modo exato a bactéria entrou no organismo, se foi dentro ou fora do hospital, nunca se saberá.
O choque séptico pode destruir um corpo em 12 horas. Só cerca de metade dos que o sofrem sobrevive.
Os médicos tinham nas mãos um ato de equilíbrio quase impossível. Um dos sintomas da doença são coágulos em profusão, e anticoagulantes foram ministrados. Mas estes podem provocar hemorragia interna e baixar a pressão do paciente. Os medicamentos usados para evitar esse efeito deixam os tecidos sem oxigênio. Enquanto isso, Verna precisava ser mantida em coma, mas a sedação poderia baixar ainda mais a pressão. A parada cardíaca era uma ameaça real.
E de fato aconteceu – duas paradas cardíacas em duas horas. McBeth e um colega se revezaram ressuscitando Verna com doses intravenosas de epinefrina. “Precisamos nos preparar para o pior”, advertiu McBeth a Debie e mais alguns amigos na sala de espera. Os rins de Verna tinham parado de funcionar. Havia coágulos no pulmão e nos capilares. McBeth mal saiu da cabeceira do leito a noite inteira.
Pela manhã, McBeth se reuniu novamente com o círculo de apoio de Verna. “A probabilidade de sobrevivência na próxima hora é baixíssima”, disse ele. Pressionado, ele calculou que Verna teria menos de 10% de probabilidade de viver.
Debie mandou mensagens a amigos e parentes pedindo orações. Nas Filipinas, a mãe de Verna solicitou um visto de emergência para viajar.
Se a probabilidade de sobrevivência de alguém estiver ligada à sua paixão pelo mundo, então os médicos subestimaram a de Verna.
Com 6 anos, ela viveu sua primeira grande emoção ao pular de uma ponte no rio local. Treze anos depois de chegar ao Canadá, deu um salto muito maior, dessa vez amarrada a um instrutor de voo livre, sobre as plantações de colza de Alberta.
Então, certo dia, cinco anos antes, Verna encontrou companhia para essas façanhas: Leah Escabillas, uma moça que começou a frequentar a mesma igreja que Verna. Em Leah, que emigrara da Arábia Saudita, Verna encontrou uma companheira de viagem, alguém cuja fome de aventuras era igual à sua.
As duas passaram a planejar viagens, que cresceram numa série de experiências constantes de resistência e adrenalina. Participaram de expedições para fazer caminhadas rústicas e na neve. Mergulharam em gaiolas com os grandes tubarões-brancos na Cidade do Cabo.
Então, em 2016, decidiram praticar bungee jump na ponte das Cataratas Vitória, na fronteira entre o Zimbábue e Zâmbia. Em pé a mais de 100 metros do rio Zambezi, com Leah logo atrás, Verna percebeu que encontrara alguém com quem dividir a missão de viver até os limites.
“Cinco, quatro, três, dois, um… bungee!”
Verna não morreu no dia seguinte à cirurgia de emergência nem no outro. Mas no quinto dia a família recebeu mais notícias ruins. Seus braços e pernas estavam isquêmicos, sem oxigênio. O tecido morto resultante poderia liberar toxinas pelo corpo e matá-la, a menos que fizessem algo radical.
Ela foi retirada do coquetel de sedativos, medicamentos paralisantes e ansiolíticos e logo saiu do coma. No dia seguinte, McBeth explicou as opções. “Sua maior probabilidade de sobrevivência é com amputações”, declarou ele.
A decisão era dela, enfatizou, mas, se optasse por ir em frente, não havia tempo a perder. Em cada membro, a isquemia se espalhava rapidamente rumo à articulação, e qualquer demora teria o potencial de impedir que ela usasse próteses.
Se algum momento exigiu que Verna fosse decidida, foi esse. Ela estava ligada aos aparelhos, entubada, mas ainda podia balançar a cabeça.
Cinco, quatro, três, dois, um.
Ela fez que sim para McBeth.
Em 4 de abril, um dia depois de duas rodadas de amputações, Verna voltou a si lentamente. Sozinha no quarto do hospital, ela olhou para baixo e viu o braço direito enfaixado e mais curto. Nenhum braço esquerdo. Mais abaixo estava o contorno desorientador das pernas diminuídas sob o cobertor cor de creme.
Como pessoa de fé que sempre se orientou pela oração, Verna fez então um pedido a Deus: “Tenho certeza de que há outra pessoa neste hospital que não é mais deste mundo mas quer desesperadamente viver”, disse. “Peço ao Senhor que a deixe viver e me leve em seu lugar.”
Mas, conforme os dias continuaram passando, ela começou a ter uma conversa diferente com Deus.
“Parece que estou aqui para ficar, pelo menos por enquanto. Gostaria de saber por quê.”
Então ocorreu a Verna que talvez ela tivesse encontrado um novo propósito na vida: não desistir.
Tudo bem, pensou, vamos nessa.
O grupo de apoio reunido em torno de Verna ganhou um nome: o Time Verna. Além da família e dos amigos mais íntimos, como Leah, também havia uma fisioterapeuta e uma assistente social. Alguém estava sempre por ali para cantar para Verna, contar uma piada ou lhe impor a mão em oração. A âncora do Time Verna era sua mãe, que chegara à cabeceira da filha em 1–ºde abril.
Leah e outros enfeitaram as paredes do quarto de Verna no hospital com fotografias dela pendurada acima de algum precipício ou em queda livre no céu. Eram para os cuidadores. “Quando vêm tratar essa pessoa, eles a veem como sobrevivente, como alguém que avança, e não como alguém digna de pena”, diz Charles Coleman, amigo e psicólogo.
Aos poucos, o corpo de Verna começou a sarar. Ela perdera o cabelo e as pestanas, que voltaram a crescer. Os coágulos que crivavam seu corpo e seu cérebro se dissolveram. “É provável que ela tenha alguma lesão permanente nos rins, mas eles funcionam. O fígado também”, declara McBeth.
Quando faz uma amputação, o cirurgião tenta salvar o máximo possível do membro. Às vezes, deixa-o um pouco longo, depois volta, se necessário, para cortar mais. “Precisamos salvar tecido suficiente para fechar o local da ferida e manter um membro funcional”, explica McBeth.
Infelizmente, o Dr. Rick Buckley, cirurgião ortopédico que realizou a amputação, teve de operá-la mais quatro vezes na segunda semana de maio, reduzindo o braço esquerdo de Verna a pouco mais do que um toco e, de forma devastadora, cortando a perna direita acima do joelho.
Para viver e funcionar no novo corpo, Verna teve de reaprender a comer, a ir ao banheiro e até a dormir. “É como ser um bebê outra vez”, conta ela.
Mais ou menos nessa época, as próteses de perna de Verna chegaram ao hospital. Andar com elas exigiu toda a sua concentração e muito treino. “Há muito a pensar só para ficar em pé”, diz ela.
Verna foi a paciente mais ferozmente dedicada que a fisioterapeuta Erin McDiarmid já teve. “Verna supera todo mundo”, diz ela. “Vai além de todos.”
Decidida a estar pronta para caminhar no verão, Verna insistiu em treinar em terreno irregular.
Em agosto, o braço de fibra de vidro de Verna ficou pronto; encaixava-se no toco por sucção. Os impulsos das contrações musculares do antebraço são transmitidos ao mecanismo hidráulico da mão, e ela pode mandá-la abrir ou fechar simplesmente pensando essas palavras.
“Consigo comer!”, proclamou ela na primeira vez que experimentou. “Posso escovar os dentes!”
Então, logo depois: “Sou capaz de assaltar um banco! Sem impressões digitais!”
Em 7 de dezembro de 2017, depois de 263 dias no hospital, Verna foi transferida para o Centro Carewest Dr. Vernon Fanning, instituição de tratamento de longo prazo no nordeste de Calgary. Aqui estão os amputados, percebeu ela.
Verna achou o clima sombrio. Com a ambição inibida, a maioria dos pacientes recorria aos auxiliares para tudo.
Havia uma academia na instituição, mas poucos a frequentavam. Enquanto Verna, dedicada, se concentrava nos exercícios, seu esforço se tornou inspiração. Outros residentes começaram a aparecer e não demorou para a academia ficar cheia; entre os residentes, a hora dos exercícios passou a ser chamada de happy hour, a hora feliz.
No fim de março de 2018, Verna decidiu se inscrever numa corrida de cinco quilômetros que aconteceria em Calgary naquele verão. Mas, na véspera do evento, ela recebeu uma nova prótese para a perna direita, e, não importava como Debie a prendesse, a dor era insuportável. Verna ferveu de frustração. Não conseguiria, disse a Debie. Ia sair da corrida. “Tudo bem”, respondeu Debie. “Mas por que não vai assim mesmo? Levamos a cadeira de rodas. Posso empurrar, se for preciso.” Verna deixou um longo silêncio no ar depois do oferecimento da irmã. Então perguntou: “Onde vamos comer depois?”
Em 21 de julho, Verna não precisou da cadeira de rodas. Andou todos os cinco quilômetros e alcançou a linha de chegada sob vivas e com a promessa de um hambúrguer com milk-shake da vitória por conta de Debie. Depois de atravessada a linha, Leah a abraçou – e lhe deu uma ideia tentadora. A Maratona de Honolulu acontece todo ano no segundo domingo de dezembro. “Vamos participar juntas”, disse ela.
Nos meses seguintes, Verna passou o máximo de tempo possível na esteira para aumentar sua capacidade aeróbica. Periodicamente, ia parar no hospital com obstrução intestinal – sequelas do tecido cicatricial –, mas, depois de cada complicação, voltava a se concentrar na meta.
Então o destino lhe deu outro golpe. Em 18 de agosto de 2018, Verna soube que Leah, que caminhava por uma crista alta do Monte Rundle, em Banff, escorregara e caíra. Foi declarada morta assim que chegou ao hospital.
Para Verna, a notícia foi arrasadora. Leah nunca desistira de suas aventuras e, certo dia em que ia caminhar na neve, chegara com um trenó para puxar a amiga. Agora, ela se fora.
Nos dias que se seguiram, Verna percebeu que não queria que o sonho de Honolulu morresse. E se prepara para participar em dezembro deste ano. Se correr uma maratona for uma façanha mais do coração do que da cabeça, mais da alma do que do corpo, não haverá problema. E Leah ainda estará bem ali a seu lado. Elas correrão juntas.
“Time Leah”, diz Verna, levantando o braço direito em saudação.