Quando um de seus gêmeos idênticos morreu pouco depois de nascer, Sarah Gray decidiu fazer uma doação de órgãos à ciência.
Redação | 22 de Novembro de 2018 às 19:00
Eu estava com três meses da gravidez de gêmeos idênticos quando soubemos, meu marido Ross e eu, que um deles tinha um defeito congênito fatal. Nosso filho Thomas tinha anencefalia, ou seja, seu crânio e seu cérebro não se formaram direito. Bebês com esse diagnóstico costumam morrer no útero ou minutos, horas ou poucos dias depois de nascerem.
A notícia foi devastadora e causou confusão. Eu nunca ouvira falar daquilo, que nunca antes acontecera na família. Fiquei me perguntando: foi algo que comi? Algo que bebi? Algo que fiz? Mas, mesmo que fosse, por que um deles era saudável?
Eu enfrentava muitas perguntas que nunca tinham resposta. E tive de me conformar com isso. Era como ter um zumbido incômodo ao fundo.
Seis meses depois, os gêmeos nasceram, os dois vivos. Thomas resistiu por seis dias. Callum era saudável, e Ross e eu continuamos a vida da melhor maneira que pudemos. Tínhamos um menino para criar.
Logo decidimos contar a Callum a verdade sobre o irmão. Temos fotos de Thomas em casa. Alguns anos depois, Callum começou a compreender o que tentávamos lhe dizer.
Às vezes ele dizia coisas tristes; às vezes, coisas engraçadas. Costumamos visitar o túmulo de Thomas duas vezes por ano, e um dia dissemos a Callum que levaríamos algumas flores.
Callum pegou um carrinho e disse: “Quero deixar o carrinho lá também”, e achei muito meigo.
Mais tarde, estávamos no sofá assistindo a desenhos, e Callum disse:
– Mãe, como é no céu?
Não faço ideia, mas respondi:
– Sabe, algumas pessoas acham que é um lugar aonde a gente vai quando morre. Outras pessoas não acreditam que exista.
“Conseguimos doar: fígado, sangue do cordão umbilical, retinas e córneas. Tive vontade de saber se essas doações tinham sido úteis.”
Eu também tinha curiosidade sobre a vida de Thomas depois da morte, mas de uma forma bem diferente. Ross e eu tínhamos decidido doar à ciência os órgãos de Thomas. Embora sua morte fosse inevitável, achamos que talvez pudesse ser produtiva. Soubemos que, como nasceria pequeno demais para se qualificar para transplantes, ele seria um bom candidato para pesquisas. Conseguimos doar o fígado, o sangue do cordão umbilical, as retinas e as córneas.
Tive vontade de saber se essas doações haviam sido úteis. Algum tempo depois, fiz uma viagem de negócios a Boston e lembrei que as córneas de Thomas tinham ido para uma divisão da Escola de Medicina de Harvard chamada Instituto Schepens de Pesquisa de Olhos. Assim, fiz uma busca e vi que ficava a poucos quilômetros do hotel; e achei que gostaria de visitar o laboratório e saber mais sobre o que fora feito com o que receberam de Thomas.
Afinal, eu lhes fizera uma doação, mas não tinha sido apenas um cheque ou uma sacola de roupas; eu lhes dera a dádiva de meu filho.
No entanto, para doar, tive de assinar um termo abrindo mão de meu direito a informações futuras sobre a doação.
Portanto, se não me recebessem bem, eu entenderia – embora sentisse, no fundo do coração, que queria fazer essa visita e que, se eu pedisse à pessoa certa, talvez até fosse convidada a visitá-los. Mas também me perguntei: se me rejeitarem, estarei preparada para isso? O que essa rejeição fará com o meu luto?
Mas assim mesmo liguei.
– Há dois anos doei a vocês os olhos de meu filho. Estou na cidade a trabalho por alguns dias. Seria possível eu passar aí para uma visita de dez minutos? – expliquei à recepcionista.
Houve uma pausa. E, para minha sorte, a recepcionista teve muita compaixão. Não riu nem disse que era esquisito, embora fosse. Ela disse:
– Nunca recebi esse pedido. Não sei a quem transferir a ligação, mas não desligue. Vou achar alguém para falar com a senhora.
Ela me pôs em contato com alguém do departamento de relações com doadores. Não eram relações com doadores de órgãos. Eram relações com doadores financeiros, mas a mulher sabia guiar uma visita. E marcamos uma hora.
Apareci no dia seguinte, e ela me apresentou a uma das pessoas que requisitavam córneas, o Dr. James Zieske, professor associado de Oftalmologia da Escola de Medicina de Harvard. Parei na soleira, e a mulher das relações com doadores explicou quem eu era. O Dr. Zieske comia uma salada em sua mesa, e se levantou e me agradeceu pela doação. Ele apertou minha mão e disse:
– Tem alguma pergunta a me fazer?
Fiquei muito emocionada ao conhecê-lo e disse:
– Quantas córneas o senhor requisita por ano?
– Meu laboratório solicita cerca de dez por ano – respondeu ele. – Requisitaríamos mais, porém é difícil consegui-las, e olhos de bebê são como ouro para nós.
Fiquei com um nó na garganta. Mal conseguia falar. E pedi:
– Pode me explicar por quê?
Ele disse que os olhos de bebês são incomuns porque a maioria das pessoas morre mais velha. Mas, ao contrário dos olhos de adultos, os olhos de bebê têm potencial de se regenerar por mais tempo no laboratório, porque as células são mais novas e se dividem com mais facilidade. Ele me perguntou:
– Se não se importa de me dizer, há quantos anos seu filho morreu?
– Há dois anos – respondi.
– Provavelmente ainda estamos estudando as células dos olhos de seu filho, e provavelmente estão agora mesmo neste laboratório.
Assim a visita terminou, e minha guia me disse:
– Nunca me esquecerei da senhora. Por favor, mantenha contato comigo.
Senti que algo dentro de mim começava a mudar. Senti que meu filho encontrara seu lugar no mundo, e que esse lugar era Harvard.
E meu filho foi para Harvard, e agora sou a mãe de alguém numa universidade importante.
Mas tomei gosto pela coisa e achei que talvez conseguisse visitar os outros três lugares também. Dei uns telefonemas, marquei duas visitas em Durham, na Carolina do Norte, e levei meu marido e nosso filho.
“Fiquei surpresa quando os pesquisadores me contaram o que estavam fazendo com cada doação.”
A visita seguinte foi à Universidade Duke, ao Centro de Genética Humana, para onde fora o sangue do cordão umbilical. Conhecemos o diretor do centro, que também trabalhara no Projeto Genoma Humano. Ele explicou que estudar o sangue do cordão umbilical dos dois gêmeos foi importantíssimo para eles. Seu campo de estudo se chamava epigenética, que significa “o top da genética”. As mudanças epigenéticas podem determinar quais genes são ativados ou desativados e são uma das razões pelas quais gêmeos idênticos podem ser diferentes. O sangue do cordão umbilical de nossos gêmeos ajudou os pesquisadores a estabelecer uma referência para conhecer melhor o desenvolvimento da anencefalia.
Depois, descemos a rua até a Cytonet, que recebeu o fígado de Thomas. Encontramos o presidente, oito funcionários e até a mulher que segurou nas mãos o fígado de meu filho. Eles nos explicaram que seu fígado e outros cinco foram usados num estudo para determinar a melhor temperatura para congelar células do fígado de bebês para uma terapia capaz de salvar vidas. Também disseram que fomos a única família doadora a lhes fazer uma visita.
Alguns anos depois, marquei o último encontro em Filadélfia, e Ross, Callum e eu fomos visitar a Universidade da Pensilvânia. Lá conhecemos a pesquisadora que recebeu as retinas de Thomas. Ela estudava o retinoblastoma, um câncer da retina potencialmente fatal, e explicou que esperou seis anos por uma amostra como a de Thomas. A amostra foi tão preciosa que ela guardou um pouco e, cinco anos depois, ainda tinha parte dela. Então perguntou se queríamos vê-la.
Quisemos. Em seguida, ela deu a Callum uma camiseta da universidade.
Quando fizemos as doações, pensei – no sentido abstrato, genérico – que era uma coisa boa a ser feita. Mas fiquei espantada e surpresa quando conheci os pesquisadores e eles me contaram, especificamente, o que estavam fazendo com cada doação. Minha dor começou a se transformar em orgulho. Senti que Thomas nos apresentava seus colegas de trabalho. Ele me apresentava a pessoas que eu jamais conheceria e me levava a lugares aonde eu nunca iria.
O zumbido que sentia no fundo da mente parou. Recentemente, Ross, Callum e eu fomos a Filadélfia receber um prêmio de apoio do Intercâmbio Nacional de Pesquisa de Doenças. Subimos ao palco e Callum, orgulhoso, recebeu o prêmio. Aproveitei para lhe fazer uma pergunta.
– Sabe por que estamos recebendo esse prêmio?
– Por ajudar os outros – disse ele.
Sei que, quando ele crescer, haverá mais perguntas. E terei de lhe ensinar que há ocasiões na vida em que há perguntas importantes, mas nem assim obtemos respostas. Só que vale a pena tentar, e a gente nunca vai saber se não perguntar.