Em 1990, acabáramos de nos mudar de Nova York para Paris, e minha mulher, Nancy, e eu estávamos abrindo caixas uma tarde tranquila de agosto, ocupados em
Thaís Garcez | 21 de Junho de 2020 às 17:00
Em 1990, acabáramos de nos mudar de Nova York para Paris, e minha mulher, Nancy, e eu estávamos abrindo caixas uma tarde tranquila de agosto, ocupados em transformar o apartamento em um lar para a família desenraizada. Sentada aos nossos pés, Claire, nossa filha de 3 anos, folheava alguns livros.
“Papai, lê pra mim, por favor”, pediu ela, empurrando um livro fino e azul na minha direção. O título, É divertido falar francês, estava estampado na lombada da capa desbotada. Meu avô, que crescera falando francês, tinha me dado o livro quando eu era criança, e meus pais o desenterraram de algum lugar e o mandaram junto conosco.
Claire apontou para uma página com desenhos abaixo dos compassos de uma antiga canção infantil francesa: “Você sabe plantar repolho?” Em tinta azul, alguém riscara “repolho” e escrevera “melancia!”
“Papai! Você fez isso?”, perguntou Claire, olhando para cima com uma expressão de choque. Recentemente a convencêramos a não escrever nos livros, e de repente aqui estava a prova de que seus pais não haviam praticado o que pregavam. Disse então a ela que meu avô tinha escrito no livro.
“Papai!” Agora ela estava confusa.“Por que seu avô fez isso?” Quando me sentei para contar a história, meus pensamentos percorreram a estrada de volta a Nebraska, tantas vezes trilhada.
“Já estamos chegando?”, perguntou minha irmã, Vicky, do banco de trás da caminhonete Ford 1954 da família.
Era o último dia de nossa viagem anual para a casa de nossos avós, que ficava empoleirada acima do leito de um córrego em Tecumseh, Nebraska. Por algumas semanas, todo verão, Vicky e eu tínhamos todas as aventuras de que precisávamos – acionando a velha bomba para ver que tipo de inseto surgia na água, coreografando fogos de artifício no terreno dos fundos, fugindo do sol do meio-dia sob uma lona jogada sobre dois varais. Quando subimos pela entrada da garagem, minha avó saiu pela porta dos fundos para nos cumprimentar. Atrás dela, vovô atravessou mancando o gramado, depois nos reuniu em seus braços.
Na juventude, meu avô, Walther Henri Kiechel, foi fazendeiro, superintendente escolar, almoxarife e, aos 26 anos, senador estadual. A trajetória de sua vida foi reta – até que um grave acidente vascular cerebral o derrubou aos 44 anos e o incapacitou. Em algum momento entre seu AVC e minha infância, ele fez as pazes com sua situação. Seu esbarrão na morte o convencera não do quanto a vida é terrível, mas do quanto é preciosa. Seu entusiasmo fez dele um companheiro de brincadeiras disputado por mim e por Vicky.
Todas as manhãs nos amontoávamos no carro do vovô para ir até a agência dos correios, entretidos durante o trajeto pelo tamborilar incessante de suas rimas sem sentido: “Olá, Dona Soledade. Por que está indo à cidade?”
O melhor de tudo eram as viagens aos “trinta”: os trinta hectares de terras que meu avô conseguira manter; o resto tinha sido vendido, ou retomado, para pagar as contas durante seus anos de recuperação. Vicky e eu subíamos no sótão do celeiro e, de um antigo estábulo embaixo, vovô fazia sons de mugidos que nos provocavam gargalhadas.
– Também vou ser fazendeiro – anunciei cheio de orgulho certa tarde, enquanto meu avô jogava paciência sentado à sua escrivaninha.
Dispondo carta sobre carta, ele perguntou:
– O que você vai plantar?
Pensei em um dos meus passatempos favoritos: cuspir sementes de melancia o mais longe possível.
– Que tal melancia? – perguntei.
– Hum, essa é uma plantação que ainda não experimentei! – Ele pôs as cartas de lado. – Mas é melhor semear logo suas sementes.
Estávamos em meados de agosto e os dias estavam ficando mais curtos. Em breve faríamos as malas para voltar para a Virgínia – e para a escola. Senti o primeiro frio da separação no outono.
– Vamos plantar agora! – exclamei, pulando da minha cadeira. – O que precisamos fazer?
Primeiro, disse meu avô, precisamos de sementes. Lembrando-me da fatia de melancia que tinha visto na geladeira, corri para a cozinha, retornando com cinco sementes pretas na mão. Vovô sugeriu um local ensolarado na parte de trás da casa para plantar as sementes, mas eu queria um lugar onde eu pudesse observar facilmente o progresso das minhas plantas em direção ao céu.
Saímos da casa e andamos até a sombra de um enorme carvalho.
– Bem aqui, vovô – eu disse.
Eu podia me sentar com as costas apoiadas na árvore, lendo revistas em quadrinhos enquanto as melancias cresciam. Era perfeito.
– Vá até a garagem e pegue a enxada – disse ele, e depois me mostrou como preparar o solo e plantar as sementes num semicírculo. – Não as amontoe – acrescentou ele em voz baixa. – Deixe bastante espaço para elas crescerem.
– E agora, vovô?
– Agora vem a parte difícil – respondeu ele. – Você espera.
E por uma tarde inteira, esperei.
Praticamente de hora em hora eu verificava minhas melancias, a cada vez regando as sementes de novo. Inacreditavelmente, elas ainda não haviam brotado até a hora do jantar, embora meu canteiro tivesse se tornado uma confusão lamacenta. À mesa, perguntei ao meu avô quanto tempo levaria.
– Talvez no próximo mês – respondeu ele, rindo. – Talvez antes.
Na manhã seguinte, fiquei preguiçosamente deitado na cama, lendo uma revista em quadrinhos. De repente, lembrei-me: as sementes! Vestindo-me depressa, corri para fora.
O que é aquilo? Eu me perguntei, espiando sob o carvalho. Então me dei conta – era uma melancia! Uma imensa fruta, de formas perfeitas, estava aninhada na lama fria. Fiquei triunfante. Uau! Sou um fazendeiro! Era a maior melancia que já tinha visto, e eu a tinha plantado!
Assim que comecei a concluir que, na verdade, eu não a tinha plantado, meu avô saiu da casa.
– Você escolheu um ótimo lugar, Conrad – ele riu.
– Ah, vovô! – exclamei.
Então, rapidamente combinamos de pregar a peça nos outros. Depois do café da manhã, colocamos a melancia na mala do carro dele e a levamos para a cidade, onde ele mostrou aos amigos o “milagre da meia-noite” que o neto havia plantado – e eles me deixaram acreditar que acreditavam.
Mais tarde naquele mês, Vicky e eu entramos no banco de trás da caminhonete para a triste viagem de volta. Vovô passou um livro pela janela.
– Para a escola – disse, sério.
Horas depois, eu o abri onde ele havia escrito “melancia” e ri da piada do vovô.
Segurando o livro que meu avô tinha me dado naquele dia muito tempo atrás, Claire ouviu a história em silêncio. Então perguntou:
– Papai, posso plantar sementes também?
Nancy olhou para mim; juntos, examinamos a montanha de caixas esperando para serem abertas. Prestes a dizer “Vamos fazer isso amanhã”, percebi que nunca tinha ouvido meu avô dizer aquilo. Partimos para o mercado. Numa pequena loja com uma prateleira de metal cheia de pacotes de sementes, Claire escolheu uma que prometia flores vermelhas, e depois peguei um saco de terra para vasos.
No caminho de casa, enquanto Claire mastigava um croissant amanteigado, pensei naquelas sementes que eu havia plantado. Pela primeira vez, percebi que meu avô poderia ter reagido ao meu entusiasmo infantil com uma ladainha de fatos decepcionantes: que as melancias não crescem bem no Nebraska, que de qualquer modo era tarde demais para plantá-las; que era inútil tentar cultivá-las na sombra. Mas, em vez de me entediar com o modo de cultivar as coisas, que eu logo esqueceria, ele fez questão de que eu experimentasse pela primeira vez o encantamento.
Claire subiu correndo os três lances de escada até nosso apartamento e, em poucos minutos, estava em pé em uma cadeira diante da pia da cozinha, enchendo um pote de porcelana branca com terra.
Quando salpiquei as sementes na palma de sua mão aberta, senti pela primeira vez o esforço que meu avô fizera.
Ele fora escondido até a cidade naquela tarde de agosto e comprado a maior melancia do mercado. Naquela noite, depois que fui dormir, ele a tinha descarregado e colocado exatamente em cima das minhas sementes.
– Pronto, papai – Claire interrompeu meu devaneio.
Abri a janela acima da pia e ela colocou o vaso no peitoril, movendo-o de um lado para o outro até encontrar o ponto perfeito.
– Agora, cresçam! – ordenou.
Alguns dias depois, gritos de “Elas estão crescendo!” nos acordaram, e Claire nos levou até a cozinha para vermos um vaso cheio de brotinhos verdes.
– Mamãe – disse ela com orgulho –, sou uma fazendeira!
Sempre achei que o milagre da meia-noite era apenas mais uma das brincadeiras do vovô. Agora percebi que foi um dos seus muitos presentes para mim. Ele havia plantado algo que nem o tempo nem a distância podiam arrancar: a capacidade de agarrar com toda a força a felicidade que a vida oferece – e um desdém pelos solavancos do caminho.
Enquanto Claire sorria, radiante, eu via a alegria do meu avô se enraizar em sua vida. E esse foi o maior milagre de todos.
Emocione-se com a história “Mensagens de meu pai”.