Franck teve queimaduras em 95% do corpo, mas seu irmão gêmeo escolheu lhe dar uma chance de sobreviver com um transplante de pele.
Um acidente deixou Franck com queimaduras em 95% do corpo. Mas seu irmão gêmeo se recusou a aceitar que aquele seria seu fim. Conheça a história dos irmãos que foram unidos ainda mais por um transplante de pele:
Na unidade de queimados do Hospital Saint-Louis, em Paris, um paciente permanece em coma induzido, o corpo queimado repleto de bolhas e inchado. Agora, depois de 72 horas tentando salvar o que restou da pele do rapaz, o professor Maurice Mimoun revisa o prontuário do paciente enquanto se prepara para falar com a família dele.
“Franck Dufourmantelle”, lê o cirurgião plástico. “Data de nascimento: 28 de dezembro de 1983; idade 32; ferido em uma explosão química no local de trabalho; queimaduras profundas em todo o corpo, com exceção dos pés e de parte da pelve.”
Como chefe da unidade que lida com alguns dos casos mais graves de queimaduras no país, o Dr. Mimoun conclui facilmente: o homem virou uma tocha humana em segundos. Na teoria, o jovem já estava morto antes de chegar ali de helicóptero.
Com um suspiro, ele entra na sala de espera.
– Franck sofreu queimaduras em mais de 95% do corpo e tem muito pouca pele restante. Nada que o proteja de uma infecção bacteriana e de entrar em choque – informa o médico. – Estamos fazendo o possível, mas…
A mensagem era bastante clara. A namorada de Franck, Clémentine Étrillard, professora do ensino fundamental, começa a chorar. O irmão, Eric, porém, se recusa a desistir.
– Franck não pode morrer – diz ele, com veemência. – Você não pode deixar que isso aconteça. Ele é meu irmão gêmeo.
Dr. Mimoun para, surpreso.
– Vocês são gêmeos? – pergunta ele, olhando o homem forte, barbudo e cheio de tatuagens à sua frente. – Gêmeos idênticos, do mesmo óvulo?
– Tão idênticos quanto possível – responde Eric.
– Franck está tão inchado que eu nunca iria perceber – diz o Dr. Mimoun. – Então há uma luz no fim do túnel. Com gêmeos idênticos, existe a possibilidade de um transplante de pele. Você estaria disposto?
– Se isso der uma chance a Franck, é claro! – responde Eric.
Eles sempre foram inseparáveis – Franck e Eric eram raramente vistos um sem o outro.
Com cabelos e olhos castanhos, eles completavam as frases um do outro e tinham o misterioso dom de saber como o outro estava se sentindo. Durante a infância, ao longo da faculdade e na vida adulta, os dois mantinham os mesmos amigos, o mesmo amor por artes marciais, por hip-hop, rock e tatuagens. Eles eram assim: melhores amigos e almas gêmeas.
Apesar disso, na tarde de 27 de setembro de 2016, Eric, dez minutos mais velho, não tem ideia de que haja algo errado quando seu celular toca. Ele atende durante seu turno em uma empresa farmacêutica em Amiens. Clém, namorada de seu irmão, está na linha, aos prantos e falando coisas sem nexo.
“É Franck”, ela consegue dizer. “Houve uma explosão química. Eric, é grave.”
Clém já havia ligado para a companheira de Eric, Fanny Robert, mãe de Jules, o filho deles de 8 meses. Fanny os leva de carro até a fábrica de borracha em Moreuil, onde Franck mora e trabalha, 30 quilômetros ao sul de Amiens.
Eles chegam a tempo apenas de ver um helicóptero decolar levando Franck para o Hospital Saint-Louis, em Paris, a 138 quilômetros dali.
“Vamos”, diz Eric. Sabendo que precisa estar lá quando Franck acordar. Se ele acordar.
No consultório, o Dr. Mimoun, alto, magro, com cabelos pretos encaracolados e óculos sem aro, está sentado à sua mesa explicando a Eric que, em caso de queimadura, os melhores enxertos vêm da pele não queimada do próprio paciente – idealmente de partes do corpo que em geral não são vistas, como nádegas, a parte superior das coxas e o couro cabeludo.
“Mas a sua pele é a pele de Franck”, explica o cirurgião. “Vocês dois têm o mesmo DNA, as mesmas células. Este seria o maior transplante de pele já realizado entre irmãos gêmeos em um caso de queimadura, mas existe uma chance de Franck sobreviver.”
Eric se diz pronto para o transplante, e Clém e Fanny apoiam sua decisão. Mas, primeiro, o hospital precisa ter certeza de que ele compreende o que o espera. As perguntas vêm rápidas e diretas.
“Você está preparado para a dor da cirurgia e do pós-operatório? Entende que vai ficar hospitalizado por pelo menos seis semanas e haverá meses de reabilitação? Compreende que, mesmo que você faça isso, seu irmão pode não sobreviver?”
Para todas as perguntas, com exceção de uma, Eric dava a mesma resposta firme: “Isso não importa.”
Respondendo à última pergunta, ele diz, simplesmente: “Quero dar uma chance a ele.”
É sexta-feira à noite, início do fim de semana, e Eric deseja apenas acabar logo com aquilo, mas, como ele é um doador de órgãos vivo, o departamento francês de assuntos biomédicos precisa aprovar o procedimento. Por algum motivo desconhecido, o escritório ainda está aberto e dá aprovação imediata. “Você é nosso primeiro milagre e a aprovação do departamento o segundo”, diz a Eric um exultante Dr. Mimoun. “Agora vamos preparar você.”
No domingo, 2 de outubro de 2016, seis dias depois da explosão, o couro cabeludo de Eric é raspado, e uma parte da sua coxa direita é cuidadosamente marcada. Na segunda-feira de manhã, os irmãos são levados a salas de cirurgia contíguas, Franck ainda agarrando-se à vida em um coma induzido, sem saber o que o irmão está prestes a fazer por ele.
Até a anestesia fazer efeito, Eric continua repetindo como um mantra: “Você vai sobreviver, Franck. Você vai sobreviver.”
Para a primeira (de três em um período de 44 dias) cirurgia do transplante de pele, – o Dr. Mimoun escalpela parcialmente a cabeça raspada de Eric, e colhe finas camadas da pele externa e da derme subjacente, que contém capilares sanguíneos, terminações nervosas, glândulas sudoríparas e folículos capilares. Depois de suturar a ferida no couro cabeludo, ele repete o mesmo processo na coxa de Eric.
Tudo corre bem, levando cerca de duas horas. A dor virá depois, abrasadora e aguda, passados os efeitos da anestesia. Os medicamentos ajudam a diminuir o auge da dor, mas não conseguem eliminá-la.
À medida que o Dr. Mimoun termina o procedimento, outros integrantes da equipe recolhem a pele extraída de Eric, colocando grande parte dela em um expansor de enxerto, uma máquina que estica e perfura a pele deixando-a semelhante a uma meia-calça arrastão. Agora, quando a pele for posta sobre o corpo de Franck, o sangue poderá facilmente fluir através dela.
Uma pausa de quatro dias é feita, e então os gêmeos são novamente conduzidos a salas de cirurgia, para que, dessa vez, Franck possa receber a pele das costas e da outra coxa de Eric. Em seguida Clém, Fanny e Eric bombardeiam o Dr. Mimoun com a pergunta: “Está funcionando?”
Durante duas semanas, o Dr. Mimoun aconselha-os a serem pacientes.
Então, finalmente, ele diz: “Sim” – por enquanto. Franck ainda vai precisar de mais pele de Eric e, nos meses que virão, de cirurgias em suas articulações enrijecidas e nas cicatrizes, e fisioterapia e aconselhamento psicológico para ajudá-lo a passar pelo inferno que o espera quando for acordado.
A terceira cirurgia para o transplante de pele ocorre numa quinta-feira, dia 10 de novembro, depois de o couro cabeludo de Eric ter cicatrizado suficientemente bem para que o Dr. Mimoun possa retirar de novo sua pele. Apesar de Eric agora saber que tipo de dor terá de suportar, isso ainda não importa para ele.
“A questão agora não é se Franck vai despertar”, diz Eric, “mas quando isso vai acontecer.”
Dr. Mimoun (à esquerda) e Eric (à direita) com Franck, no Hospital St. Louis, em Paris.
Enquanto se recupera, Eric visita o irmão sempre que pode, o corpo repleto de bandagens, transportando seu medicamento intravenoso. Às vezes, ele coloca hip-hop e rock para Franck escutar, na esperança de que as músicas possam penetrar o inconsciente do irmão. Em outras, ele simplesmente fala sobre a infância deles, os times para os quais torcem, sua própria luta contra o câncer de testículo há cinco anos, quando Franck deu força ao irmão.
Memórias mais profundas também chegam à superfície – memórias traumáticas que fazem parte do que eles são, mas que raramente são verbalizadas. Dois garotinhos, idênticos, sentados lado a lado no cômodo da frente da casa de sua família em Amiens, enquanto o pai lhes diz que eles precisam ser fortes porque a mãe deles foi para o céu depois de ter sofrido um acidente de carro. Eles têm 8 anos. Nos dias que se seguem, eles fazem as malas e se mudam para a casa dos avós, em Moreuil.
“Papai não podia cuidar da gente, porque trabalhava durante muitas horas como cozinheiro em um restaurante”, Eric diz em voz alta. “Você se lembra? Juramos que nós dois sempre estaríamos juntos.”
Após cerca de um mês em coma, Franck é lentamente despertado.
Desorientado por causa de todos os tubos e máquinas e analgésicos, ele começa a entrar em pânico. Por favor, me mate, ele pensa, apenas me mate. Então volta a dormir e sonha com fogo.
Mais tarde, Franck acorda novamente. Dessa vez, ele vê um rosto familiar pairando sobre ele. Eric. Mas a cabeça do irmão está enfaixada e ele veste um roupão de hospital.
– O que aconteceu com você? – pergunta Franck com a voz rouca.
– É o que aconteceu com você – responde Eric. – Eu dei a você 45% da minha pele.
Franck começa a chorar.
– Você fez isso por mim?
– É como se você fosse eu. – Eric sorri e em seguida ele também começa a chorar.
Em meados de dezembro de 2016, Eric está de volta ao trabalho, os cabelos crescidos em sua maior parte e a nova pele com uma coloração avermelhada, como se apresentasse uma erupção cutânea.
No hospital, assim que desperta, Franck trabalha pesado com terapeutas a fim de movimentar os membros do corpo que estiveram parados por mais de um mês. No início, cada sessão dura poucos minutos, tempo suficiente para lhe trazer dor e frustração. O ex-atleta agora não consegue nem flexionar os dedos. Mas continua se esforçando.
Em fevereiro de 2017, integrantes da equipe médica estão debatendo fora do seu quarto quando ele aparece de repente à porta, magro e debilitado, mas com um ar de entusiasmo. Então começa a caminhar, fazendo careta por causa do esforço, passos curtos, cambaleantes, que significam o quanto ele se superou desde que chegou ao hospital como uma “casca” humana enegrecida.
Ele diz: “Surpreendi vocês, não é?”
Em março, ele é transferido para um centro de reabilitação em tempo integral em Coubert, cerca de 50 quilômetros a sudeste de Paris. Lá, pela primeira vez, ele olha sua imagem no espelho. Vê as articulações retorcidas, cobertas por tecido cicatrizado vermelho vivo com listras brancas, o que sobrou de uma orelha, e abdome, pernas e braços que, antes musculosos, agora parecem uma colcha de retalhos.
A depressão se instala, sombria e imensurável.
Ele faz o que pode para combatê-la, e seu fisioterapeuta e terapeuta ocupacional tentam ajudar, mas, a mais de 180 quilômetros de casa e com Clém e Eric de volta ao trabalho, às vezes é mais fácil simplesmente se entregar.
– Em que eu me transformei? O que as pessoas vão pensar de mim? – Ele chora durante uma rara visita do irmão em um fim de semana.
– Pare! – diz Eric, endurecendo a voz. – Um dia de cada vez. As pessoas vão pensar que você é um homem forte e determinado. Aliás, já é isso que elas pensam.
Então Franck se esforça mais, minuto a minuto, até que, um dia em setembro, ele vai para casa em Moreuil; para os braços de Clém, Eric, Fanny e seu pequeno sobrinho, Jules, que, aos quase 2 anos, já fala e anda. Embora ainda esteja em reabilitação, em agosto de 2017 ele é um paciente ambulatorial. Toda manhã, antes das nove horas, uma ambulância o pega e transporta por 18 quilômetros até um centro de tratamento em Corbie.
Toda tarde, por voltas das cinco, ela o pega novamente para levar para casa. No centro, ele faz de tudo, de exercícios de fortalecimento das pernas até badminton e exercícios de destreza, e recebe massagens a fim de que sua pele se torne mais flexível.
– É como um emprego de nove às cinco – ele brinca com Eric.
– É o seu emprego – vem a resposta do irmão.
No meio da manhã do sábado 17 de março, Franck e Clém estão ocupados preparando um desjejum reforçado para Eric e Jules, que chegarão a qualquer momento. Dirigindo seu carro especialmente adaptado, Franck passou antes na padaria para comprar croissants e pain au chocolat, e, na mesa, há suco de laranja, café e champanhe.
“Esta é a minha nova vida, e levo um dia de cada vez, cada dia marcado por pequenas vitórias”, diz ele. “Agora consigo ir a uma padaria e não me incomodar com os olhares das pessoas.”
De repente, a porta da frente se abre de supetão. Jules entra correndo e abraça o tio antes de seguir para a cozinha. Eric entra logo após o filho, forte e sorridente, e se senta ao lado do irmão. Embora Franck esteja bem mais magro que ele, com uma das pálpebras parcialmente caída, eles ainda são gêmeos muito parecidos – agora mais do que nunca, parte um do outro.
– No início, foi tudo muito louco – conta Eric. – Eu ficava ao lado da sua cama de hospital e falava sobre qualquer coisa que me viesse à cabeça, e também tocava música.
– Eu ouvi durante o coma! – exclama Franck.
Ele então ri e enrola a manga da camisa para cima a fim de mostrar os restos de uma tatuagem sobre um braço repleto de cicatrizes. Pode-se ler a palavra “Vida”, em tinta preta esmaecida.
– Foi a única tatuagem que sobrou – conta ele. – Isso deve querer dizer alguma coisa.
Dias melhores: Franck (à esquerda) e Eric (à direita) juntos em Moreuil.
Por Lisa Fitterman