Um lugar paradisíaco pode não ser tão gentil com seus visitantes. A autora narra um episódio ocorrido em Amsterdã, na Holanda, quando esteve lá.
Fomos apresentadas a uma escadaria de boas-vindas. Eram casas-moinho. Entramos em um quarto-sala-oficina cheio de desenhos lindos. Yasuko escolhia os postais. De que Holanda falava o pintor Anton Pieck? Cenas românticas, crianças rosadas, homens e mulheres de chapéus; carruagens cortando ruas de pedra, barraquinhas iluminadas que vendiam frutas e doces, cenários parrudos de neve, muita vida dentro dos pequenos mundos ilustrados. Aquele romantismo deveria existir em algum lugar para alguém. Certamente não para Yasuko em sua rotina de marmitas e ferros de passar.
Tão pouco existia para mim, em minha rotina de comprar o queijo menos caro do mercado, ensaiando duas ou três palavras do idioma que era um verdadeiro massacre. Não podia esquecer os fones de ouvido para evitar que a língua dos outros me perfurasse os tímpanos.
Yasuko comprou alguns desenhos que serviriam para matar o tempo da noite. Encheu de postais caros a sacola que a senhora lhe oferecera. Sorriu gratidão como se a senhora tivesse dado os postais e não cobrado uma fortuna por cada pedaço de papel colorido que, segundo a própria, tinha muito valor porque Anton Pieck desenhou a mais valorosa Holanda. Jamais me ocorreu cortar postais. Eu fatiaria meus dedos um a um logo na primeira tentativa.
Desde o início, já me faltava concentração.
Com a sacola no guidão, Yasuko saiu na frente. Ainda era resto de verão, e o céu estava manso. Íamos pela ciclovia margeada por poucos prédios e várias casas. Eu estava inteiramente dispersa, olhando para dentro das salas, quartos e cozinhas.
Foi quando aconteceu de eu cortar um carro ao meio – tive esta impressão. Não vi o sinal vermelho, avancei e fiquei a milímetros de distância do automóvel. Eu e a máquina quase nos atravessamos. Se eu morresse ali talvez fosse jogada em um dos canais…
…alguém se lembraria de me buscar?
A motorista do carro freou com raiva. Quando saí do modo-transe, percebi que não tinha acontecido nada comigo, mas talvez a lataria dela tivesse arranhado. Eu fiz que fui embora, mas precisei voltar. Fiquei com medo de a polícia chegar e me carregar algemada. As bicicletas são veículos como qualquer outro e eu tinha cometido um delito grave. De cabeça baixa, voltei. Yasuko me olhava com cuidado. A motorista me esperava fora do carro, já fazendo a vistoria dos possíveis estragos.
Quando consegui levantar a cabeça, dei de cara com a raiva dela. Eu estava tremendo, não conseguia falar nada. Mas pude ver o carro. Não havia nenhum arranhão. Ela perguntou onde eu morava. Sacou de um bloquinho e começou a anotar.
Para que aquele endereço?
Dei o número errado do prédio.
E fingi que mancava. Era o jogo ao contrário. Se alguma coisa tivesse me acontecido, a culpa era da mulher, que provavelmente teria empurrado o carro em cima de mim – eu diria isso a meu favor. Então, prevendo minha confissão falsa, ela resolveu trocar a raiva pela solidariedade e me perguntou se eu estava bem. Eu disse que não, que a perna doía. Yasuko, parada na esquina, deve ter acreditado, porque se apiedaram de mim seus olhos minúsculos. Bastou aquele pequeno teatro da perna para a motorista antes com raiva encerrar a conversa e guardar o bloquinho.
Seguimos emudecidas o caminho inteiro da volta. Yasuko respeitou meu silêncio, mas sabia que eu não estava bem. O carro que eu tinha cortado ao meio com a minha bicicleta tinha me cortado de volta. Não foi o carro em si, mas a raiva no rosto da holandesa que me estraçalhou. A raiva dela anotando meu endereço no bloquinho foi uma paisagem difícil de apagar.
Chegamos cedo, não tinha escurecido ainda.
Eu estava assim, trocando um pensamento pelo outro sem conseguir escolher qual era o mais adequado ao sentimento da hora quando a campainha tocou.
Yasuko.
Segurava um prato coberto por um guardanapo que parecia pano bordado. Ela disse: “Fiz para você.”
Eram os bolinhos de chuva de que eu tanto gostava. Um doce que eu tinha comido em um quiosque de rua, assim que cheguei a Amsterdã.
Ela entrou, a gente ficou na cozinha devorando os bolinhos naquele entardecer. Eu me esqueci da cara de raiva da motorista e da minha quase morte.
Depois de uma hora, esvaziamos o prato, comemos até os farelos de açúcar. Ela deixou o guardanapo bordado que não usamos de tão lindo. Subiu depois para a casa no andar de cima. Fiquei na cozinha pensando que o meu postal favorito era a lembrança de Yasuko com o prato de bolinho de chuva nas mãos.
Minha Holanda, enfim, era também romântica.
Por Claudia Nina – [email protected]
Jornalista e escritora, autora, entre outros livros, de Amor de longe (Editora Ficções)
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