Ele trabalha com a energia e a intensidade, embora não com a habilidade, de um mecânico de bicicleta com o dobro da sua idade. Mantém a cabeça baixa, Longe de casa, Steve Madden conhece um garoto que tinha todas as razões para odiar, mas o ensinou sobre o amor através de uma bicicleta.
Redação | 5 de Novembro de 2018 às 19:00
Ele trabalha com a energia e a intensidade, embora não com a habilidade, de um mecânico de bicicleta com o dobro da sua idade. Mantém a cabeça baixa, concentrado na tarefa, falando consigo mesmo, acionando os pedais lubrificados de uma das 120 robustas bicicletas pretas que montamos aqui com a intenção de doar a uma instituição de caridade ruandesa.
Ele parece ter a mesma idade dos meus gêmeos que estão no terceiro ano do ensino fundamental. Estamos trabalhando juntos há uma hora num espaço pequeno de um complexo murado perto de Kigali. Embora ele não fale inglês e eu não fale a língua ruanda, usamos os sinais universais de polegar erguido, gestos com a cabeça e “no problem”. Trabalhamos em equipe.
E sorrimos. Muito. O garoto tem um sorriso como nunca vi em mais de sete anos trabalhando com agências africanas de auxílio para montar e doar bicicletas a instituições de caridade. Vi muitos trabalhadores dedicados. Muita gente incrível. Mas há algo neste aqui, que, de maneira bem inesperada, conquistou meu coração mais do que os outros garotos que trabalham com voluntários em todo o complexo.
Talvez por ter mais ou menos a idade dos meus filhos, a um mundo de distância num subúrbio americano. Os olhos brilham e os dentes faíscam, enquanto esse garoto, cujo nome não sei e não consigo descobrir, sorri de orgulho e felicidade ao finalmente pôr os pedais na bicicleta. Mostro-lhe o polegar erguido e ele sorri de novo. No decorrer dessa úmida manhã, montamos umas 15 bicicletas, a metade do que eu faria se trabalhasse sozinho. Mas tenho um novo amigo.
E ele gosta de mim. Sempre que paramos de trabalhar para que eu lhe explique alguma coisa, ele pega a minha mão. Quando paramos para tomar chá, ele pega a minha mão de novo e lhe passo algumas balinhas de chocolate. Uma mulher de roupa tradicional vem até nós, me ignora, fala com ele com rispidez e lhe dá um tapa na mão. Fico chocado, mas no centro da África os métodos de criação dos filhos são diferentes dos de Nova Jersey, e nada digo enquanto ele se esforça para conter as lágrimas. Depois, ele pega a minha mão e me puxa de volta para as bicicletas. Em dois minutos, está sorrindo, e dessa vez sou eu que fico com um nó na garganta.
Na hora do almoço, comento com Jules Shell, diretora da Fundação Ruanda, instituição de caridade com a qual nos relacionamos, o excelente trabalhador que temos nas mãos. Ela responde:
– Bem, nós o chamamos de Jean-Paul. Mas ele não tem um nome verdadeiro.
Devo ter feito cara de confuso. Ela me dá um sorrisinho.
– Acho que a mãe dele não conseguiu lhe dar um nome na época.
Não entendo, mas Jules continua:
– Que idade acha que ele tem?
– Nove anos, talvez 10.
Ela me olha com os olhos cansados, como fica uma trabalhadora de auxílio humanitário exausta de explicar o inexplicável.
– Tem 16 anos – revela. Digo que não pode ser; ele é miudinho. – Tem, sim. Todos esses garotos têm a mesma idade. O genocídio foi em 1994. Faça as contas.
O menino, como as outras crianças dali, é fruto de um estupro. A mãe, da tribo tutsi, foi violentada durante o genocídio hutu em 1994, que chacinou cerca de um milhão de ruandeses. Violentada por uma gangue de milicianos que mataram seus três irmãos, ela pensou em abortar, mas resolveu ter o filho. Na Ruanda tribal, porém, o nascimento foi como um A de “adúltera” estampado em sua testa, o que a tornava duas vezes vítima: de um crime violento e, depois, da rejeição de sua família, profundamente conservadora.
Enquanto comemos, passa uma fila de presos acorrentados.
Não admira que não conseguisse um nome adequado. Já bastava ser lembrada diariamente do horror sofrido. “Cuido dele, mas não consigo amá-lo”, disse ela a Jonathan Torgovnik em 2007, quando ele e Jules criaram a Fundação Ruanda. “Não tenho interesse em ter uma família. Não tenho interesse no amor. Fiquei fisicamente incapaz com as surras que levei; não consigo carregar nada. Não posso trabalhar. Foi bom eu não ter matado o menino, porque agora ele busca água para mim.” Jules acha bem provável que o tamanho miúdo do menino se deva à desnutrição.
Enquanto comemos, uma fila de presos acorrentados, com macacões de cores vivas e levando pás e picaretas, passa pelo complexo. São assassinos condenados, os responsáveis pelo genocídio. Passam por suas vítimas duas vezes por dia. Alguns presos caçoam.
Depois do almoço, não consigo olhar o menino da mesma maneira. Simplesmente não me sinto capaz de conciliar o horror de sua concepção e de sua vida, totalmente sem amor, com o rosto luminoso, o comportamento doce. Essa criança tem todas as razões para odiar, mas saúda o mundo com amor. Penso nos meus filhos, que têm tudo o que pedem. Exceto pelo amor, pos isso eles não precisam pedir; recebem-no automaticamente e o retribuem. Como seria a vida deste garoto se fosse amado como Kit, Chris e Luke?
Essa criança tem todas as razões para odiar, mas saúda o mundo com amor.
Ele volta a trabalhar nas bicicletas com a mesma intensidade de antes, mas com um pouco mais de qualidade e rapidez a cada uma que termina de montar. Por volta das 15 horas, quando decido fazer uma pausa e tento chamá-lo para tomar um chá e comer chocolate, ele apenas sorri e segue trabalhando, ainda que os pedais continuem a confundi-lo.
Pedir a uma criança (ou menos a um adulto) que monte bicicletas o dia todo sem andar nelas é quase tortura. Assim, lá pelas 17 horas, levo-o para fora com uma bicicleta que se que foi montada direito e faço um gesto para que dê uma volta. Os gestos não dão certo, e peço a um intérprete que lhe diga isso. Seus olhos se tornam solenes com a notícia e, embora a bicicleta seja para alguém com metade da sua altura, ele joga a perna por cima, sai cambaleando por um beco e dobra a esquina.
Enquanto fico ali com uma chave tripla na mão, uma onda de fadiga me inunda. Penso na tarde quente de um domingo de setembro alguns anos antes, quando meu filho Luke insistiu que eu tirasse as rodinhas traseiras da bicicleta. Então, prontamente, ele se equilibrou nas duas rodas e desceu a rua correndo, afastando-se de mim. Num dos grandes paradoxos da paternidade, eu acabara de lhe ensinar como sair de perto. Era como se eu tivesse dito: “Amo tanto você que vou lhe ensinar a ir mais longe. Porque, se fiz o serviço direito, você sempre pedalará de volta.”
“Amo tanto você que vou lhe ensinar a ir mais longe. Porque, se fiz o serviço direito, você sempre pedalará de volta.”
Talvez seja o jat lag, talvez o efeito do chá esteja passando, mas meus olhos se enchem de lágrimas. Limpo-os e olho o beco, esperando por ele. Mas nem sinal. Meu amigo não está lá. Imagino-o indo embora daqui para um lugar onde seu amor lhe seja retribuído e sua afabilidade valorizada. Só indo embora – para sempre.
De repente, uma bicicleta bate na minha perna direita; deixo a chave cair. Ele está ali, depois de contornar os prédios do complexo. Às gargalhadas, de pés no chão, pega minha mão e me olha com aquele seu sorriso.
Por Steve Madden