Pinga! Isso lá é nome de cachorro? De cachorro, não. De cachorra, sim, com muito orgulho. Só não entendo bem por que ganhei esse nome... Mas gosto dele
Pinga! Isso lá é nome de cachorro? De cachorro, não. De cachorra, sim, com muito orgulho. Só não entendo bem por que ganhei esse nome… Mas gosto dele mesmo assim.
Se já tive outro nome não me lembro. Desde que me entendo por cachorra eu vivia nas ruas, e algumas pessoas me chutavam e diziam: “Suma daqui sua vira-lata!” Outra coisa que não entendo. Nunca achei lata para virar. Na verdade, eu era uma “fura-saco”, isso já fiz muito.
Nas minhas andanças, encontrei gente que vivia igual a mim, especialmente algumas crianças. A diferença é que elas dormiam em cima dos bancos nas praças e eu, embaixo deles. Disputávamos os restos de comida no lixão ou nas lixeiras dos supermercados.
Um dia, que ficou marcado em minha mente como o dia D, andei um pouco mais longe e cheguei à margem do rio Cuiabá. Ali vi uns homens brincando com areia. Ela caía de uma bica, misturada com a água do rio, até formar um monte bem grande. Então, com uma coisa de dar medo de tão grande, que eles chamavam de “pá carregadeira”, colocavam a areia em cima de outra coisa enorme, que chamavam de “tombeira”, e despejavam até fazer outro monte. Depois eles pegavam a areia desse monte e levavam embora. Nunca entendi a graça daquilo tudo.
Eu olhava tudo de longe, com medo do infalível chute. Mas, ao contrário disso, o gerente da “draga” – nome que davam para a brincadeira – se aproximou e me chamou:
– Pinga, vem comer!
Ele pôs um prato cheio de comida perto de mim e disse:
– Come!
Eu pensei: “Estou sonhando, ou a fome e o sol escaldante estão me fazendo delirar?”
Mas o prato continuava lá. O homem disse novamente:
– Pinga, vem comer!
Eu arrisquei. Era comida de verdade! Nunca vou esquecer o cheiro e o sabor daquela comida… tinha até carne! Nem é preciso dizer que nunca mais saí de lá.
Aliás, eu saí, sim. Vou contar como foi: Um dia, uma menina linda foi passear lá na draga e me viu. Ela se encantou comigo – e eu com ela. Era filha do homem que me dava comida. Então ela pediu ao pai que a deixasse me levar para casa.
– Nós moramos em um apartamento, não podemos ter um animal em casa – ele respondeu.
Ah, se eu soubesse como, teria ajoelhado e rezado, pedindo ajuda a Deus. Já que não sabia fazer isso, fiquei implorando com os olhos.
– Eu cuido dela. – insistiu a menina. – Deixa, por favor!
E ele permitiu.
Hoje moro num apartamento no 11º andar, em Cuiabá (MT). Conheci a família linda: a mulher, outra menina bonitinha e o filho. Todos gostam de mim e eu os amo muito. Quando viajam eu vou junto, até me deito na rede com eles. Tenho uma caminha cor-de-rosa, um prato e uma tigela, só meus! Depois que vim morar no apartamento, comecei a engordar. Todos achavam que isso era natural, afinal de contas, eu estava sendo muito bem-alimentada.
No entanto, uma noite comecei a sentir coisas estranhas. Para surpresa de todos, dei à luz cinco filhotinhos fofos, que foram adotados com muito amor por pessoas generosas. Às vezes me lembro daquelas crianças que conheci nas ruas. Será que também foram adotadas? Tomara que sim! Se eu soubesse que elas também encontraram uma família, aí sim, minha felicidade seria completa.
Nilce de Barros Viégas