Lembro-me do dia em que meu pai me entregou minha herança. Vivíamos uma época sem esperanças. Nossa casa estava para ser vendida. Após décadas de doenças
Lembro-me do dia em que meu pai me entregou minha herança. Vivíamos uma época sem esperanças. Nossa casa estava para ser vendida. Após décadas de doenças e de tratamentos rigorosos, mamãe definhava num hospital psiquiátrico. Ela morreria em cinco anos. Meu irmão mais novo, que nasceu com uma lesão cerebral, também estava numa instituição. Minha irmã tinha ido para a outra extremidade do país, procurando escapar desses período de tristeza. Para meu pai, esse momento significava o fim de tudo – o término de uma família, a decadência do código que um dia nos uniu.
Como filha mais velha, fiquei com a tarefa de empacotar a mudança, com a mobília deteriorada e as gavetas abandonadas, cheias de contas a pagar e cartas não respondidas. Eu tinha 25 anos, era recém-casada, prática e estava feliz com minha fuga para a vida adulta. Enfrentei esse caos enchendo e etiquetando caixas. Meu pai apareceu para me dar apoio moral. Após algum tempo, percebi que ele havia desaparecido.
“Eu nunca tinha visto meu pai chorar”
Encontrei-o na entrada da garagem. Ele tinha ido até o sótão, descido e aberto seis caixotes grandes de madeira. A princípio, fiquei com raiva. Tínhamos de fechar caixas e não as abrir. Então, vi que ele estava chorando. Ali de pé, balançando a cabeça e chorando. Olhei para o chão. Ele havia desmontado os caixotes e enfileirado cabeças, bustos e corpos de pedra.
Eu nunca tinha visto meu pai chorar. E nunca tinha visto aqueles pedaços de escultura, feitos pela minha mãe na juventude. Uma forma feminina. Uma cabeça. Dois bustos de homens com traços afro-americanos. Um outro busto de mulher – minha mãe –, esculpido por outro artista.
“Essa era sua mãe”, disse meu pai, as lágrimas descendo-lhe pelo rosto. Antes da escuridão. Antes da depressão, antes das pílulas, das noites insones e dos tratamentos de choque, dos anos de mais pílulas e bebida, e das instituições em que ficava confinada. Antes de o meu pai, tenente de infantaria da Europa rumo ao Dia da Vitória. As esculturas estiveram guardadas por todos aqueles anos. Essa era a mãe que eu nunca conheci – uma mulher alegre e talentosa.
“Há sempre a promessa de vida, em toda sua força”
Hoje as esculturas estão expostas em prateleiras e nos cantos da minha casa, uma herança tanto de minha mãe quanto de meu pai. Como teria sido mais fácil para ele ter mantido as peças nos caixotes e os levado para o depósito. Ao revelar aquela história, ele teve de quebrar o severo código de seu regimento e sua tradição de controlar rigidamente as emoções. Ele queria ter certeza de que eu ouvisse, de que eu visse.
Essa foi a sua mensagem para as gerações futuras: mesmo que haja muita tristeza e grandes perdas, há sempre a promessa de vida, em toda sua força. Eu vejo isso nos meus netos – ainda pequenos – que acariciam o enorme busto que ficava na sala de jantar, como se ele fosse um animal de estimação. Sinto isso na minha vida, como seu vaivém de luz e escuridão. Uso isso em meu trabalho como jornalista. Quando entrevisto pessoas que estão em crise, posso compreendê-las. Mas sempre sei como buscar a vida, como procurar a dádiva.
Por Abigail Trafford