Depois de 25 anos de casamento, os típicos problemas de relacionamento são inevitáveis. O segredo é olhar para eles com bom humor.
Redação | 26 de Fevereiro de 2022 às 14:00
Depois de 25 anos de casados, os típicos problemas de relacionamento em minha casa são assim: vou à cozinha fazer o jantar e vejo a bengala do meu marido encostada no móvel onde ficam as panelas. (Ambrose está com dores no joelho.) Afasto a bengala e a encosto na moldura da porta.
No dia seguinte, ela está novamente encostada no móvel. Tiro-a de novo. Isso pode durar semanas. Nenhum de nós menciona o fato ao outro. É apenas um cabo de guerra sobre o lugar das coisas na casa.
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Mencionei a ele outro dia como o drama romântico ficou engraçado e pouco importante em nossa vida, e ele contrapôs que, na verdade, não tinha notado que eu ficava tirando a bengala do lugar.
– Você fez isso todo dia durante dois meses? – Então acrescentou, defensivo:
– Bom, você deixa a colher na lata de comida do cachorro.
– Não deixo, não. Não todo dia.
– Deixa, sim. Toda vez que dá comida ao cachorro, você põe a colher de volta na lata em vez de pôr na lava-louça.
– Como você sabe que é todo dia se nem notou que eu tiro sua bengala do lugar?
Então ambos rimos, porque, se são essas as crises do nosso casamento depois de um quarto de século, para mim é uma vitória – e também uma longa rendição em câmera lenta.
No 50º aniversário de casamento dos meus pais, papai disse ao público reunido: “A alegria do casamento é que duas pessoas se tornam uma. Elas só passam os cinquenta anos seguintes brigando sobre qual delas.”
Ah, como isso é verdade, e há quanto tempo. Eu queria que Ambrose fosse mais parecido comigo, mais intenso, emocionalmente expressivo e assertivo socialmente. Ele era um homem tímido, de poucas palavras, um músico que preferia tocar seus instrumentos ou brincar com nossos animais ou filhos do que ir à cidade. Achei que conseguiria mudá-lo. Eu ficava maluca quando ele escapulia pela porta dos fundos de sua própria festa-surpresa de aniversário. Ou sumia nas sombras em eventos sociais.
Certa vez, recebi um convite gravado a ouro e entregue em mãos de uma Pessoa Muito Importante para uma festa de Natal, endereçado a mim “mais convidado”. Fiquei empolgadíssima e o mostrei a Ambrose, e ele me avisou que não tinha a mínima intenção de ser meu “convidado”. Disse que preferia “prender o pé numa armadilha para ursos”
Basicamente, me casei com o Touro Ferdinando – o personagem infantil que não se interessa pela glória da tourada caso possa se sentar placidamente à sombra das árvores e cheirar flores. Mas eu não conseguia acreditar que ele era assim mesmo. Ficava tentando agitar uma capa vermelha à sua frente.
– Em que você está pensando? – eu perguntava.
– Em nada.
– Tem certeza? Nada mesmo? Como não podia ser verdade, ele devia ter segredos. Mil histórias se passavam em minha cabeça sobre o que ele realmente pensava. Levei anos para compreender que ele não me escondia nada, não tinha pensamentos privados, não planejava casos. Ele estava genuinamente pensando coisas como “Será que ainda fazem aqueles amendoins com endro de que eu gostava quando criança? Acho que vou procurar no Google.”
A princípio, tentei outra rota rumo a seu subconsciente perguntando sobre seus sonhos. Mas ele nunca conseguia se lembrar. Até que um dia se lembrou. Desceu com uma cara divertida e disse: “Sonhei que estava tirando um cochilo.”
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Foi mais ou menos nesse momento que percebi que ele realmente era o Touro Ferdinando. E parei de tentar deixá-lo mais parecido comigo. Comecei a avaliar as virtudes de ele ser ele. Quero dizer, há as óbvias. Ambrose é engraçado, bondoso, apoiador, um excelente pai. Podemos passar horas conversando e nunca ficar entediados. Ele não se importa se escrevo sobre ele nas revistas.
E há o outro lado de ser alguém que não nota que estou brigando com ele por causa da bengala: isto é, as coisas que agradeço por ele não notar. Quando as crianças eram pequenas, por exemplo, e não me restava um fiapo de energia para comprar lingerie para o Dia dos Namorados, eu andava com calcinhas enormes encimadas pelo triste sutiã bege de bojo esfarrapado, e ele nem notava.
Veja bem, talvez fosse porque ele fica cego sem óculos, o que é outra vantagem. Também gosto de achar que ele não nota quando furto gotas de chocolate da despensa ou falo sozinha ao cuidar do jardim. Há algo a elogiar num parceiro que nos dá bastante espaço.
Também há algo a elogiar em abrir mão de certas expectativas no casamento. Nas últimas décadas, às vezes o Dia dos Namorados e nosso aniversário de casados foram muito tensos, na época em que eu tentava tornar Ambrose mais parecido comigo. Havia lágrimas, ataques de fúria e fantasias de bater na cabeça dele com um martelo de borracha.
Agora que deixei algumas coisas de lado, há um romance mais ameno em jogo. Não sei que nome os deuses lhe dão, mas envolve um apego profundo, uma visão de mundo em comum, memórias conjuntas e filhos criados.
Em algumas datas especiais eu me vejo francamente aliviada por deixar de lado a lingerie que já não me cabe tão bem e só cheirar as rosas que ele infalivelmente me traz.
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